Há leveza tão angelical nos gestos e na voz de Julieta, que naquela comunidade lhe estimam capacidades sobrenaturais. Para bem e para mal. Daí estimarem que, à morte, subiria aos céus, num balé de asas, porque lá era morada dos justos. Ou que, partindo, a terra se abriria a seus pés, sucumbiria aos desvãos do fogo eterno. Senso comum é que, qualquer fosse o desfecho, ele não estaria longe. Os passos cada vez mais cadenciados, as mãos se amparando ao vazio, e, nos diálogos, conchas se interpondo aos ouvidos... Tudo nela denuncia fim de linha. Não falta quem enxergue para além disso: a velhinha cheirando a formol, quer seja dia, quer seja noite. Os que comungavam em sua defesa elegiam inabalável conduta de misericórdia. Ela beirando os 40, banhando os enfermos do lugar. E, décadas mais tarde, como agora, acolhendo séqüitos de leprosos, franqueando sua cozinha a retirantes sem pão e sem água. Afagando loucos mansos. Eram certamente essas virtudes quase canônicas que a uns inspiravam reverência. A tantos outros, temor. Lendas em torno de seu nome iam e vinham, ao sabor das disputas insanas travadas sabe-se lá por quê. Vivendo só, tendo chegado numa madrugada de inverno, a mácula gratuita de que aportara fugida. Que fatiara o marido em 27 partes, num ataque de ciúmes. Depois, a insinuação de que envenenara toda a família por herança. E, tão grave, que fizera pé-de-meia em camas de bordel. Julieta adoecia em angústia, se definhava em magreza. Sequer retrucava, jamais reagia. Às injúrias, se isolava ainda mais. Nada seria tão devastador, porém, quanto as infâmias daquele agosto. O povoado tricotando delírios, uma voz se ergueu, tom de convicção, para dizer que o segredo se quebrara... O silêncio, a gente se entreolhando, atônita. O burburinho. E a fala do acusador: por trás dos sapatinhos em laços, dos vestidinhos clássicos, dos perfumes com ar de metrópole, da aura caridosa, residia ninguém mais que uma... que uma bruxa. A platéia se abalou. Pôs dúvida. Ele então jurou verdade. Invocou testemunho próprio. Elencou asas de morcego, galinhas negras, plantas espinheiras. Foi além. Descreveu sessões com lagartos assombrosos, bodes. Fantasiou punhais. E, valha-me, Deus, uma criança em pose de sacrifício. Bastava!!! A multidão se acotovelou, a noitinha já desfazendo a silhueta dos currais, foi quando surgiu uma tocha. O som crepitando inconfundível, logo uma dúzia de mãos empunhava os bastões em fogo. Do alto Julieta vislumbrou a cena. Quisesse confortar a alma, deixaria repousar ali a lembrança das tantas procissões que seguira, serpenteando ladeiras, iluminando esperanças. Mas, não. Deu de ouvir tambores, como integrassem um cortejo de Inquisição. Se era mesmo o destino que a vida lhe reservara, estava pronta. Desalojou-se da janela, resignada. Tomou a direção do quarto. Mirou longo as imagens, como se despedindo. A bonequinha francesa, recordação da avó, o retrato dos pais. Sorriam. Saudade. O cacho do primeiro corte de cabelo. Emoldurado em carinho. Suspirou, elegeu uma peça de roupa branca. Fez uma oração por cura de pecados. Mais: por perdão àquela gente. E estava exatamente à porta no instante em que se entrincheiraram junto à entrada. Uma relutância funda, sensação surda de que tudo flutuava. A ponto de quase se poder tocar a respiração ofegante das pessoas. Feito estivessem diante de um duelo. O encanto quebrou-se com a primeira tocha partindo a escuridão ao meio. Caiu aos pés de Julieta. As outras se lançaram. Ela deixou-se crepitar, e se foi fragmentando, vagarosa, em pontos de luz. Subindo aos céus. A que se vaga-lumeassem por todo o sempre aquelas lembranças. Iluminando a noite do lugar. Ardendo levemente ao coração daquela gente. Noda do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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