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SEÇÃO
Crônicas
25/08/2008 - 18h12
Da Série “Alguns de meus lugares prediletos”
André Falavigna
 

Fica na Liberdade, mais especificamente na Tomáz Gonzaga, e chama-se Kintarô. A rua é uma que sai da frente do decrépito, mas renomado Hospital Bandeirantes – decrépito pela fachada, em reformas, renomado pelos prêmios que ostenta em placas penduradas às paredes eternamente em obras. Você vem pela Galvão Bueno em direção à Sé e, diante do vetusto edifício, logo vê a pequena travessa, à esquerda.

Subindo um pouco pela calçada direita, seja numa noite quente dum dia de semana qualquer ou nessas tardes mais frias destes sábados de inverno, você alcançará o número 57, encimado por duas daquelas simpáticas lanternas vermelhas que são uma das marcas do bairro.

Às vezes, ainda na calçada – das de antigamente, preta e branca em pastilhas – há um ou dois conjuntos de cadeiras e mesinhas metálicas, típicas de boteco, encostadas às paredes que ladeiam a porta. Isso depende de o quanto o lugar está lotado, o que varia bastante conforme fatores bastante previsíveis – final de dia, sexta-feira, começo de mês – e inevitáveis. Em suma: freqüentemente as mesinhas, em algum momento, tem que ir mesmo para a calçada, mesmo porque não é preciso muito para encher o lugar.

Dentro da casa, só há o pequenino espaço entre a base de um “ele” (a letra, não o pronome) e a rua, diminuído pelos bancos altos de madeira, a perna do tal “ele” que forma o balcão até o fundo do corredor – aliás, o próprio bar – espremido por bancos idênticos aos da entrada e que se abre, mais ao fundo, num minúsculo quadrado capaz de comportar apenas três pequeninas mesas baixas também de madeira, com poucos lugares cada e milagrosamente encaixadas ao lado de dois freezers para cerveja que guardam, à esquerda deles, mínimos banheiros destinados, ainda, a servir de despensa para os materiais de limpeza. As paredes são de azulejo branco e servem de mural para comunicações diversas da colônia – sobretudo as culturais e esportivas. O piso, frio e de barro, como o das cozinhas de vinte anos atrás. O balcão, à direita da entrada, suporta as estufas cujo conteúdo será nosso melhor assunto, mais à adiante. Atrás, o corredor pelos quais passam os irmãos, jovens sócios da mãe no negócio e cujas costas imensas não nos impedem de ver garrafas e mais garrafas e mais garrafas de muita e muito boa bebida, destilada e fermentada. No final da peça, que seria única não fosse o biombo envidraçado do caixa próximo à última seção, vem a chapa e a abertura que vai dar no tal quadradinho. Há, na parede azulejada, alguns armários de cozinha, penso que da marca “Fiel” (aquela, do pastor alemão gravado em alumínio), muito antigos e inexplicáveis.

Todo cuidado é pouco. Os donos lutam sumô. Isso. Sumô. O maior deles – ambos são fortes, mas só este último é também parrudo – é campeão brasileiro amador e vive indo aos países mais exóticos para travar embates, por exemplo, contra russos que pesam mais de 200 quilos gloriosamente acomodados em 2 metros e tanto de altura – isso tudo entre um curso de gastronomia e outro. Curiosidade: a namorada dele é... campeã brasileira. De sumô. Como se vê, o Brasil é capaz de avacalhar qualquer coisa. E não, a moça não lembra em nada um daqueles lutadores mastodônticos que nosso imaginário encomendaria. Sequer é gorda, o que torna qualquer piada falhada. De toda forma, creio que saquê nenhum do mundo lhes animará o suficiente para exceder-se.

Boteco japonês. Coisa que pode parecer estranha em qualquer outro lugar do mundo, mas não no Japão – ou em São Paulo. Petiscos japoneses e petiscos brasileiros. Saquê, uísque, sojo – destilado de arroz ou cevada, ou ambos. Cerveja. Não se incomode consigo e experimente tudo. Parece barato, mas não é. Porque, como a comida é boa, aquelas honestas porçõezinhas de R$ 6,00 viram lenda em dois minutos. E, daí, você vai precisar de pelo menos outras sete.

A de polvo é a melhor dentre as japonesas. A de costela de porco, a melhor dentre as brasileiras. Dobradinha imperdível, arroz impecável. Cerveja bem gelada. Não é lugar para sashimis, sushis ou frescuras do gênero, mas sim para culinária de bar. Sojo? Aprendi a tomar lá. Não aceitam cartões, nem de débito, nem de crédito. Cheque? Às vezes sim, às vezes não. Mas não discuta, pergunte antes.

A mãe dos dois que lhe atenderão é uma senhora brava, muito brava. Ela que cozinha a maior parte do que você vai comer. Trate-a bem. Os filhos dela lutam sumô. A futura nora também. Não duvido que ela própria esteja apta a lhe descer dois ou três sopapos.

Não se restrinja à comida. Muitos dos japoneses que vão ao Kintarô, que aliás vive lotado deles, tornam-se ali muito expansivos – afinal, eles estão mais em casa do que você. Você poderá conhecer empresários, funcionários de multinacionais, diretores, aposentados, vagabundos, párias, professores, estudantes, donos de café e até gente vinda do Cambuci, como eu e outros de pior laia. Um deles não viu problemas em tratar nossos dois japoneses por “Chen” – tomando ambos por chineses e, pior, por um único chinês – e apostando tudo nos monumentais sensos de humor e ocasião dos anfitriões.

Gosto muito de ir lá e sentar-me por longas horas, empanturrar-me de sardinhas, polvo, mariscos e sopinhas enquanto, com delicadeza e decisão, vou enchendo vergonhosamente a cara, elevando o tom de voz e entrando nas discussões mais improváveis, sempre nos termos mais inadequados e, na maior parte das vezes, com gente que nunca vi antes e que jamais voltarei a ver. É uma beleza. Na manhã seguinte, bate aquela vergonha ao lembrar-me de mim mesmo a urrar qualquer exasperação, tudo diante daquela recepção tão educada que se limita apenas a rir baixinho, sempre entre viva satisfação do calor da batalha e as mais diligentes providências para fechar o bar, expulsar-nos e ir deitar-se.

Kintarô é o nome de uma criatura mítica, algo como “garoto de ouro”, um menino que se batia, no sumô, com filhotes de ursos. E ganhava.

O que explica muita coisa. Afinal, isso de por ursos para dormir parece estar no sangue daquela gente.


Nota do Editor: André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal, ofalavigna.blog.uol.com.br, no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.

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