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SEÇÃO
Crônicas
30/08/2008 - 17h39
O samba fez plural do amor
Eduardo Murta
 

Fosse somar enredos de casualidade desprendida, a bodega de Arlindo bem que caberia numa enciclopédia de sentimentos. Ali casamentos se desenharam, outros se desataram. Se avivaram e se desidrataram amizades. Partidas foram pranteadas em comoção de luto, e chegadas saudadas como a gols do time amado. Para além de tudo, ali se cantou a vida.

E dela se tomou emprestado o cinzel que ajudou a esculpir o destino de muita, muita gente. Arlindo, que toca o negócio como tangesse boiada em paragens do sertão, toureando intempéries, orando por tempo bom, sequer faz idéia do que representa àquela gente. Ainda que impliquem com o lápis à carpinteiro, cravado à orelha direita. Com a mania de repassar as notas e levar o dedão à língua...

No fundo, veneram a ele, à birosca, festejam o minifúndio naquele alto de morro na humilde Lagoinha como a uma ante-sala do paraíso. Em que violão, carteado, sinuca, vitrolões, cachaça e lingüiça defumada nunca saem do cardápio. E que, por pacto, não entram armas de fogo, drogas. Nem polícia. Nem notícia ruim. Ah, quantas madrugadas viram nascer sambas-enredo à inspiração de caixinhas de fósforo.

Era natural, assim, que Mestre Afonso, Acir, Pacífico e o velho Paes tenham feito escola por lá. O jeito de tamborilar à mesa, as canções invariavelmente materializando cabrochas. Das desconcertantes. Pois foi por exato uma dessas, que, juram alguns, saída de um sambinha de rimas melosas, apareceu por lá. E mudou para sempre a história do lugar.

Não seria para menos. Era fim de tarde despretensiosa, daquelas quartas-feiras em que nada se espera além da chegada da quinta. Chegou ela. Adentrou o salão como flutuasse. A malemolência do gingado insinuando tudo que tivesse a ver com sedução. E os queixos foram desabando, um a um, a sua passagem. O rasgo da saia revelando instigante par de coxas. Amulatadas. Roliças. E seios, à silhueta, num relevo que abalava a geografia dos desejos.

O perfume amadeirado foi o último detalhe a ser notado. Rumava ao balcão, e parou, súbito, à sensação de estar nua em meio à multidão. Enrubesceu. Resguardou, com as mãos, os segredos do corpo em apreciação pública. E, diabos, como a busca por um reles pacote de açúcar a metera numa enrascada daquelas?!?! Baixou os olhos, até a alma em desalinho, e já saía em recatada pose, quando os acordes desarmaram sua fuga.

Doce trapaça, dedilhavam sua canção preferida. Pensou se ficava, se partia... Ficou. E foi se virando lentamente à mesa de onde emergia o som. Sorriu, os dentes lembravam pérolas, e num instante se soltou. A voz aveludada num namoro íntimo com as notas musicais. Como fossem velhos conhecidos. Faziam par perfeito. Prazer, se chamava Natália. E, claro, mal algum que o açúcar temperasse as caipirinhas. Mal algum que durasse até o amanhecer. E, ritual se repetindo semanas à frente, os amigos não tinham mais como esconder: o quarteto exalava paixão por ela.

Ponta de ciúme, desencontro, desavença, a musa botou ordem na casa: se acarinhara a todos, mas não firmaria compromisso com ninguém. Tão-só teatro de aparências. Porque, incômodo segredo, se tornara ela refém daqueles acontecimentos. Ciência alguma explicaria: se apaixonara pelos quatro. Pior: mesmo grau de intensidade. Qualquer fosse a escolha, seria radical.

E Natália vergou-se ao extremo diante daquele amor em escala plural. Propôs acordo e, surpresa, assentiram. Às segundas, usava aliança por Mestre Afonso. Às terças, por Acir. Às quintas, por Pacífico. Às sextas, por Paes. Convertia-se solteira aos finais de semana e, às quartas, embalava as rodas de cantoria da bodega do Arlindo. Num tom que, acreditem, enfeitiçaria o coração do próprio samba. Contam que, desde então, pelas bandas da Lagoinha, ele soa ora meio contente, ora meio doído. Porque sabe que jamais terá uma Natália por inteiro.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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