“Numa guerra, diante de tanta crueldade, é melhor estar morto do que vivo”. “Eu cheguei ao acampamento eram quase 5h00. Andei cerca de 4 horas pela mata. Não entendi o motivo de ter que chegar de madrugada ao acampamento. O sargento falou que precisávamos chegar antes do sol nascer. Eu e mais 117 soldados obedecemos. Afinal, ensinaram para nós que se você quer sobreviver numa guerra, o mandamento básico é obedecer seus comandantes. Todo mundo quer sair logo dessa merda. Voltar para casa e namorar muito – ir para muitas festas – curtir a vida. Se o preço a ser pago é aceitar o que esses idiotas dizem – a gente aceita. Faremos qualquer coisa para voltar o quanto antes para casa”. (17 de julho de 1972) “Na primeira semana até que foi divertido. Todos comendo, bebendo e fumando no acampamento. Uns contando mentiras. Outros ouvindo mentiras. Nossa vida se resumiu a isso. Mas hoje cedo veio o sargento dizer que vamos partir numa missão especial dentro de dois dias. Não nos disse mais nada. Boatos é que iremos atacar um pelotão inimigo, ao norte. Os soldados mais antigos dizem já sentirem o cheiro de sangue. Eu estou com uma tremenda dor de barriga e preciso ir numa moita a cada 30 minutos. Uma merda e tanto essa situação”. (25 de julho de 1972) “Só deixamos o acampamento ontem pela manhã. Eu segurando esse fuzil pesado e imaginando se realmente saberei usá-lo na hora de um combate. Estou fedido. Sempre achei bonita a farda de um soldado, mas uma coisa era ela no quartel – sendo lavada e engomada corretamente – outra é ela, aqui, no meio da mata. Minha roupa fede, então eu a lavo no rio. Aí ela passa a feder mais ainda. Nossa vida nada tem a ver com filmes sobre guerra, onde todo mundo é bonito e valente. Somos uns cagões. Temos medo de morrer de uma bala no front ou de uma picada de inseto. Somos crianças mimadas brincando de heróis”. (29 de julho de 1972) “Já lutamos faz seis dias e seis noites. Já vi um monte de amigos morrerem na minha frente. Estou desesperado. Não quero morrer. Já não sei quantos inimigos matei. Eu não posso escutar um barulho que já atiro. Todos estão em pânico, assim como eu, nessa merda. A comida deve acabar em dois ou três dias. Passa um rio aqui perto, mas não podemos beber sua água, pois ele está contaminado por sangue e restos de corpos de homens e de bichos. Eu nunca vi nada igual. Isso é um pesadelo. Só peço a Deus para voltar para casa. Eu nunca imaginei passar por isso. Sinto saudade da minha cama e de tudo e de todos de casa”. (09 de agosto de 1972) “Eu já não acredito que vou voltar. Estamos cercados. Dos meus amigos só restam dois. O sargento está morto, assim como o tenente e todos os oficiais que conheço. Estamos sem líderes e não somos mais um pelotão. Agora já é cada um por si. Meus olhos estão esbugalhados por causa dos dias e noites sem dormir. Meus pés estão em carne viva de tanto correr. Tenho marcas por todo o corpo de tanto bater nos galhos dar árvores e me jogar de qualquer jeito, e a toda hora, no meio de qualquer coisa. Pelo menos, sou um dos poucos que ainda não foi ferido por tiro. Estamos num grupo de 30 soldados correndo pelo rio e procurando sair desse inferno. Papai e mamãe, só queria dizer que amo vocês. Amo a Lohane e amo o Bob também. Estou com muita saudade”. (17 de agosto de 1972) O comando do exército condecorou, de forma póstuma, 55 dos 720 soldados que fizeram parte dos pelotões que adentraram na mata fechada naquele fatídico ano de 1972. Daniel foi um deles, pois tudo indica que foi um dos últimos soldados a tombarem no front. “Numa guerra, diante de tanta crueldade, é melhor estar morto do que vivo”. Essa foi uma de suas frases nas cartas que mandava aos pais. Sei que parece estranha a afirmação, mas observando-a com calma percebe-se sua coerência. Naquela guerra de merda, Daniel precisou morrer para poder viver tranqüilo de novo. Eu, Fábio de Lima, nunca fui à guerra, mas Daniel foi. Eu sou escritor. Daniel nunca mais teve como escrever nada. Nota do Editor: Fábio de Lima é jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
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