Alguém está roubando o tempo, e não é Deus. Seja quem for, tem poder. Mas não se entrega porque usa de todos os ardis. Não rouba, por exemplo, horas inteiras, nem pacotes de minutos redondos. Descobri sua manha usando minha caçapa de pegar neutrinos, o metrô. Desci as escadas às 10 e 14 e quando cheguei no último degrau, eram 10 e 17. Não se leva três minutos para chegar até a plataforma, mas um minuto no máximo. O roubo, portanto, é sutil, para ninguém dar falta. Parece até um benefício: você se livra de lembrar que às 10 e 15 precisava tomar seu remédio ou dá graças a Deus que faltam agora apenas três minutos para as 10 e 20, quando faltavam seis. Descobri também que o roubo é diário, sistemático e deve existir em reserva uma eternidade de tempo surrupiada. Nem sabemos, talvez, que ainda estamos no século 20 e que o ladrão foi colocando na algibeira incontáveis minutos enquanto nos apressávamos em sair da ditadura, da recessão, do sufoco, da juventude. Agora me dou conta: os pais morreram depressa demais e ganhei um corpo desconhecido em poucos dias, como um susto na balança. Foi ele, que aos poucos levou o tempo que eu deveria gastar para ir me acostumando à falta de eternidade da minha vida. Não há remédio para isso, pois nada fizemos quando havia tempo. Fomos ficando cada vez mais passivos em relação aos milhões de segundos escoados pelo ralo e agora o ladrão está bem estabelecido, derrubando a lógica de todos os ponteiros e números digitais, ludibriando os relógios eletrônicos, convencendo as autoridades mundiais de que estamos no tempo certo, como se uma irresistível imbecilidade tivesse tomado conta de todos. Para quem tem dinheiro – e não é o meu caso – o roubo do tempo faz parte de suas rotinas, já que roubam tudo, de merenda escolar a fósseis. Mas para quem está sendo acionado para pagar imposto, a defasagem dos quartos de hora acumulados em montanhas de arquivos mortos servem apenas para aumentar os juros. Alguém está roubando o tempo e deve ser o governo. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe – Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
|