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Crônicas
10/09/2008 - 15h00
O amor saiu de férias, mas me levou junto
Eduardo Murta
 

É ao frio londrino se definhando, numa quase aveludada transição para a primavera, que Pati brinda a terceira taça de vinho. Riscava no calendário a contagem regressiva para o abril em que manhãs e noites eram comparáveis só às de setembro quando o assunto era plenitude. Sob esse sentimento acolhedor é que ela lia a carta do amigo Jonas - selo brasileiro e um aroma que, julgava, pertenceria a lugar algum mais que além dessas terras.

Pati deixa que o cálice se encontre uma vez mais com os lábios - a ocasião pedia essa entrega -, porque não se cansara em reler o texto. Tivera exatamente o mesmo sentimento da época em que um artista tachara a saudade como um sentimento inútil. Mas agora custava a crer. Logo com Jonas. Pois fora. Ele encerrava suas saudações com uma máxima que ela se orgulharia em desconstruir, ponto por ponto: "Escrever sobre amor e sobre o papa já caiu de moda".

A respeito do papa, vá lá, não tinha qualquer dúvida, ainda que ele arrastasse multidões mundo afora, havia mesmo se descolado do centro dos acontecimentos. Mas do amor!!! Ah, esse não!!! E não seria por mera inocência infanto-juvenil conservada como em potes de cristaleira, a chave sob a tutela dos avós. Era por opção deliberadamente madura. Pensou em como responder ao amigo. Descartara telefonar, e a internet lhe soava impessoal além da conta.

Debandara também da hipótese de apelar à provocação barata, como contratar serviços de grafiteiros e se apossar dos muros da cidade com aquela palavra-chave. Jonas acordando e, na rua, dando de cara com as quatro letras gigantescas. Pelo trajeto ao trabalho, de carro, encontrando quilômetros e quilômetros de uma única mensagem, reverberando feito fosse uma sentença de dízima periódica. Já o imaginava enlouquecido. E ficaria mais, se lançasse mão de um último recurso: duplas sertanejas se revezando a sua janela para cantar o amor, e nada mais.

Fora elaborando aquele rosário de reações mirabolantes, e já à oitava taça de um bom tinto, adormeceu. Dormindo, sonhou com o Brasil e com suas gentes. Por curioso, lá estava Jonas, amigo velho, entoando sua coleção de cenários futuros: uniforme escolar, falava convicto de um tempo em que as desigualdades se reduziriam a pó, em que a Lua seria logo ali, em que o Rio das Velhas, na para além de centenária Belo Horizonte, seria de novo morada dos peixes.

A manhã engolindo a penumbra de Londres, Pati despertou. A cabeça rodava, mas permaneciam ali, nítidos, os contornos do sonho. Enxergava um pouco de exagero beirando o infantil naquilo tudo, mas deixasse maturar. Iria mesmo responder a Jonas. Que a aguardasse. Elaborou uma, duas, três alternativas, até que chegasse àquela pretensamente emblemática.

Postou a carta naquela manhã, logo cedinho, e calculou o trânsito preciso a que chegasse ao destino. Queria combinar a leitura com tudo o que programara. E cá Jonas, no Brasil, retornando do trabalho. Deixando as correspondências sobre a mesa, esquentando a comida no microondas, levando o garfo à boca à frente do noticiário de televisão. Vai desacelerar por inteiro diante da cena.

Surge uma mulher na tela. Sobre uma das pontes do Tâmisa, ameaça se jogar, enquanto embandeira estandartes ao vento. Um close, e lá está a palavra amor, percorrendo de uma à outra extremidade. Segunda aproximação da câmera, e vem aquele rosto. Ela, ela. Pati!!! Sorria. Seguiu sorrindo mesmo depois de presa. Sorria para ele. E gritava algo. Demorou para que compreendesse, mas caiu-lhe a ficha: "A carta, a carta!!". Estendeu a mão em direção aos envelopes - remessas bancárias, assinaturas de revistas, e aquela letra inconfundivelmente feminina.

Abriu, encenando suspense. Dizia assim: "Negar o amor é, em verdade, reconhecê-lo absoluto e indispensável, ainda que não o perceba. E afirmar que ele morreu, mesmo que no exercício humildade da literatura, é, no fundo, divisá-lo até naqueles lugares em que tão-somente sua miragem deveria existir". Seguiu-se uma assinatura em vermelho vivo. Jonas enxergou ali texturas de vinho tinto, nuances de batom e, claro, amor. Desbragado amor.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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