O pescado não estava lá essas coisas – a velha cismou. E percebeu que tanto o peixe quanto o peixeiro tinham o mesmo olhar mortiço, falsamente cândido, sobretudo sonso: na certa, pretendiam enganá-la. O vendedor mostrou a guelra vermelha que atestava a boa saúde do bicho. Apalpou-o à vista da freguesa para mostrar a consistência da carne, observou o quanto as escamas estavam firmes e o ventre, ainda duro. Vai levar, madame? – ele insistiu, aliciante, seus olhos fixos nos do abadejo como a lhe pedir melhor expressão (um discreto sorriso, quem sabe) para vencer a velha, que exigia mais evidências da qualidade. De sua parte, o bicho fazia o possível: permanecia imóvel, olhos esbugalhados e o lábio inferior ligeiramente derrubado como o de um velho que deixara cair o cachimbo. Mas o tempo passava e ele perecia. E a velha, nada. Logo, o abadejo exalou um cheiro enjoativo e, da boca agora flácida, escapou-lhe a língua numa careta terminal. A freguesa arremedou-o, rodou nos calcanhares e retirou-se aos arrulhos, insultada. Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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