Morreu o Cangaço, e com ele um tempo em que os homens tatuavam à pele o nome do inimigo morto. Mas seus mitos buscaram morada noutros cenários, à sombra de um forçoso anonimato. Cisco, amolador de facas de Lampião, era um deles. Aportou errante numa das bandas do Rio Doce, e ali se converteu em exímio açougueiro. Era também forma de devorar seu demônio interior. Destroçava músculos, interseções nevrálgicas, num balé de rupturas em que o sangue era o astro do espetáculo. Ele sem desprender uma só gota de suor, em habilidade cenográfica de samurai. Se aquietara naquelas terras. Experimentara passagens infrutíferas por lonas de circo e, valha-me, Jesus, em barbearias. Nestas resistiu até dar com os tremores quase incontroláveis às mãos no instante em que a navalha deslizava sobre os relevos das veias. Afogava-se em inclinações vampirescas, os olhos pululando ao desejo de sangrar a epiderme alheia. Queria tão-somente reencontrar-se com um estado de prazer primitivo... E retrocedia, vigiando-se. Até em sacristão se convertera, num simulacro para lá de bem-arranjado, ainda que professasse crenças vigorosas. Do contrário, terminaria descoberto e condenado às masmorras do governo. Por lá já estivera e não entraria na fila por um segundo bilhete ao inferno. Daí, a mansidão servil mesmo nas ocasiões em que, balconista de comércio, se via humilhado. Domava a cólera, as vísceras se incendiando em ódio. Dizia pois não, sim senhor. E colecionava os traços, os nomes, a que levasse a um acerto de contas no futuro. Nele haviam amadurecido as táticas de sobrevivente, em que paciência felina e precisão de águia se punham essenciais. Então, festas de padroeira, visitas de trupes de palhaços e ciganos arranchados se transformavam em circunstâncias de ouro para seus planos. Se emaranhava nos noturnos, todo em negro, brandia as facas à frente da vítima. Ordenava que rezasse. E, à terceira Ave Maria, zap!, desprendia os nós da garganta num golpe. Cuidava de limpar com a própria língua o aço em que, agora, projetava sua aura de contentamento. Os tons vermelhos se dissipando pouco a pouco. Aquilo era pura Lei do Cangaço. Beber da morte do desafeto. Se desfazia das roupas de ritual, e logo tratava de arrumar álibi, quebrando copos na quermesse, alertando o delegado sobre tipos estranhos com que topara pelas ruas. Simulava medo, armava trejeito de compaixão e abandono. Para o dia seguinte, reservava o mais grotesco do enredo. Exibia peças do corpo do morto, devidamente desfiguradas, entre as carnes do açougue. Pensava nos temperos, no corte, no filé brandindo em gordura ao fogão. Nos dentes daquela gente destroçando todos os vestígios. Como a idéia lhe confortava. E, aos elogios à maciez do produto, devolvia gentilezas. Ensinava a freguesia a marejar tudo, em cubos, ao alecrim e erva-doce, ou assar de mansinho ao vinho. Estupendo! Noutro ofício de confundir, se fazia voluntário em toda brigada que buscasse rastros do assassino. Jamais descobririam qualquer pista. As mínimas, apagava. E manteriam párias e figuras do submundo injustamente encarcerados. Cisco fazia questão de visitá-los, em alardeado gesto de conforto espiritual. E intercedia a que, sem provas, fossem soltos. Nessas injunções, reduziu praticamente a zero a cota de alvos, e decidiu que era hora de parar. Mais: de confessar, a que purgasse ao menos parte de seus pecados. Antes, alertou a Padre Costelo que o colocaria em vigilância absoluta. Mais que reforçou suas tarefas de sacristão nas horas vagas. Amanhecia, e lá vinha, pedindo bênção. Anoitecia, e era Cisco de novo à porta da igreja. Até que, centenário, o religioso tombasse doente, morresse. Meses à frente, o velho amolador de lâminas de Lampião tratou de reunir a gente do lugar. Preparava uma revelação. Iria partir-lhe os sentimentos, mas não se calaria. Perguntou se estavam de fato prontos a ouvir o que jamais imaginara contar, beirando os 90 anos de vida. A platéia assentiu, o silêncio reverberando no salão paroquial. O sacerdote... Parou num engasgo. Recompôs-se e prosseguiu: o sacerdote, insuspeito, executou friamente um por um dos desaparecidos. Fez-se um oh de espanto. Foi enumerando os detalhes, num choro copioso. Dizendo que Costelo lhe confiara o segredo em forma de confissão. Direcionou a polícia ao conjunto de facas, num fundo falso em tábua corrida. E pediu que, misericordiosos, fizessem uma oração sincera pelo amigo. A que sua alma encontrasse refúgio sereno. Benditos fossem. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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