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Crônicas
12/10/2008 - 16h19
Samba por amor a Raíssa
Eduardo Murta
 

A cinza já fazendo curva morta, e o cigarro se apequenando ao canto esquerdo da boca eram sinais de que Marão estava ao limite de lapidar novo samba. Dos delicados, embalados até em caixinhas de fósforo, numa nobreza que, contra-senso, vinha exatamente da simplicidade que emprestava a suas criações. E, metódico, que palitos houvessem de ser dos intactos. A que garantissem ressonância cheia, namorando as frações ideais do violão, o que quer que aquilo significasse.

Foi essa natureza singular que o transformou em ícone pop da cidade. Gente subindo o morro no afã de vê-lo. Ilustrou páginas de jornais. Telas de tevê. Cedeu voz ao rádio. Bebia e celebrava ao reconhecimento, mas o que queria mesmo era tê-la de volta. Raíssa. Raíssa... Em exposição, imaginou-a retornando. Vingou a tática casual. De mansinho, ela foi voltando. Apareceu numa quinta, estilo beija-flor. Aportou numa sexta, agora imitando panteras com sede, intercalando a mirada dos olhos entre o vazio e a lâmina d’água. O vazio era ele.

Por fim, se acomodou de vez. Feito fosse gata mansa. Na mesinha que dava para a serra e alcance privilegiado do palco. Fixou-se por longo, longo tempo, hesitante, sabendo que, quando girasse os olhos, lá estariam os de Marão, em saudade quase bêbada. Olhou, desviou, tornou a congelar-se ao alvo, e sentiu o tom de voz ficando doce. As notas, mais graves.

Reencontros como aqueles eram, decididamente, tremor de terra. O deles, em quintessência, porque mergulhava num delicado triângulo em que ela, madrinha de casamento, confidente da noiva, terminaria por se apaixonar pelo candidato a marido. Se dividira em prantear mágoa pela amiga, a ponto de desidratar a alma e, noutro flanco, se ver arrastada por uma força avassaladora a movendo em direção ao homem amado. Pudesse, se partiria em duas. Renegaria a um dos impulsos.

Não podia. Acabaria mantendo-se feito fosse um pêndulo. Naquele dia era mulher inclinada a deixar sangrar. Flambar angústias. A lembrança a arrebatando, o coração em compasso trôpego, foi. Estavam, enfim, ali. Frente a frente. Cinco mesas os separando –ora soando a desvãos de precipícios, ora a intermitências vulcânicas. Ficaram se desvencilhando da perplexidade, paralisados. Até que Marão desse freio à música, súbito, e caminhasse a ela.

Pareciam segundos comuns a touradas. Um gesto em falso, e tudo se colocaria a perder. Quatro passos, três passos. Dois passos... E as mãos se buscaram no ar. Trêmulas. Sem saber por onde começar, como fadados a se pulverizar em instantes. Os corpos foram se moldando em encaixe de relojoeiro. As bocas se acharam naquele vendaval. Sugeriam cumplicidade secular.

A madrugada veria o barraco ser tomado por paixão sem meio termo. Declarações de para sempre, nunca mais, eu juro. Sou teu. Sou tua. Veio a manhã, e o pêndulo de Raíssa, agora desfeito o calibre de seis chopes e duas caipirinhas, a fez de novo topar com o estranhamento. Foi se recolhendo à proximidade dos corpos. Ambos nus. Ensejava esquecer, apagar, remediar. Curar. Instantâneo que chorasse. E como chorou. O relevo do colo em soluços quebrados. Marão despertou. Sobressaltado. Não precisou dizer palavra. Aquilo resumia tudo.

Repôs sutiã, colheu as roupas. Nem retocou maquiagem. Saiu sem se virar. Lá se vão meses, e nada de Raíssa ressurgir assim, numa brisa vaga de contentamento. Num clarão qualquer de primavera. E o sambista segue embalando as canções de jeito terno, como se ela fosse derivar exuberante pela porta do botequim. Flutua em esperança cega. Exaspera à mínima silhueta feminina. Ela, ao longe, confere as luzes do bar. Se encoraja. Se apronta. Se desarma. Se desarruma.

Desiste uma vez mais. Ele, deu ontem nos jornais, calou o violão. Simploriamente, contam que foi tristeza. Transformou as cordas num varal de lembranças. Raíssa estampada em todos os acordes possíveis. Esticou ao beiral da cerca. Pôs nas mãos do imponderável. Ao sonho de que o vento leve. A chuva lave. A vida louve. E ela... Ela love.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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