25/04/2024  20h51
· Guia 2024     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
22/09/2004 - 08h22
Ubatuba de luto
Márcia Fernandes
 

Ubatuba veste-se de luto. Estão pintando suas ruas de preto. Vedando seus poros e encobrindo sua pele com um véu negro, tal qual uma viúva a quem se nega o direito de revelar sua beleza. Sob uma burka. Teria ela cometido algum pecado? Ou guardaria alguma culpa pelo fato de ser assim, tão exuberantemente bela?

Nunca sobrevoei a cidade, mas se o fizesse, que curiosa paisagem: de um lado a maravilha, natureza invejada e desejada pelo resto do mundo, pintada de verdes, azuis, brancos, lilases, dourados, todas as cores que se misturam e se distribuem por águas salgadas e doces. Matas, pássaros, peixes, pedras e areias.

Tudo em Ubatuba é exagero. A aparição de um tié-sangue já é um susto, a abundância de chuvas, um absurdo, a variedade de bromélias, um despropósito, a quantidade de praias, inigualável. Um metro quadrado de Mata Atlântica tem mais biodiversidade que toda a cidade de São Paulo. Exagero? Pode ser, mas só um pouquinho. Ubatuba é que é um exagero.

Do outro lado, a estátua branca de um Anchieta escrevendo, com o sangue dos Tamoios, poemas à Virgem. Prédios, edículas, edifícios cravados nas encostas dos morros, fachadas de antigos sobrados transformados em caixinhas e caixotes comerciais. Um paredão de carrinhos de sanduíches enormes ao lado de uma feira de artesanato made in 25 de março, dezenas de uns e noventa e noves, como não se vê, em qualquer outro lugar, favelas, manguezais devastados, bairros-refúgio de traficantes e mais, muito mais. Exagero? Não.

São tantos seus desencantos, que parecem não caber nesse espaço que se encerra entre a serra e o mar.

Mas mesmo sendo estreita essa pequena faixa de terra e areia, a irracionalidade e insensatez humanas, em sua profundidade inesgotável, consegue inventar mais uma modalidade nos jogos do poder, um novo ato de vandalismo: cobrir a cidade de pixe. Um castigo semelhante àqueles medievais, o de jogar óleo fervendo nos inimigos, ou atirar pedras na pecadora, mas que pedras, se eles cobriram todas com esse pixe de petróleo fedorento?

Aos habitantes do inferno não se desejaria tamanha crueldade. Talvez a justiça divina, percebendo que exagerou na extravagante natureza, tenha resolvido equilibrar a balança e nos brindar com uma dose equivalente de irresponsabilidade e ganância, qualidades que agregadas ao oportunismo, egoísmo, ignorância e à estética da miséria de caráter, fazem de Ubatuba uma cidade, assim, tão exagerada.

Mas isso já é uma outra história, que faz parte da mesma história, a triste história que o Condephaat deveria preservar e, além de não preservar, ajuda a escrever com pixe preto. A história de um lugar que nega e esconde a sua própria história.

As pedras que calçam as ruas de Ubatuba não são como aquelas de Paraty. As pedras de Ubatuba são meros paralelepípedos, porém são eles que permitem que a chuva, fenômeno, aliás, nada raro por estas paragens, retorne ao solo e faça com que a cidade respire. São eles ainda um dos poucos traços e resquícios que poderiam diferenciar esta cidade de qualquer centrinho comercial de bairros descaracterizados, como aqueles que encontramos em grandes metrópoles. O calor abafado que esse asfalto produz é um velho conhecido de quem já passou por esses lugares e sabe o suficiente para nunca mais querer voltar ali. O fato é que não existe justificativa para esse calçamento forçado, às vésperas das eleições.

É redundante e cansativo enumerar aqui os efeitos que esse exagero de pixe produzirá. Aguardemos o próximo verão, a temporada, as ocorrências de trânsito envolvendo ciclistas e motoristas, ambos irresponsáveis, mas em desigualdade de condições. É também repetitivo dizer quais são os reais objetivos dessa obra e a que interesses atende. Mas, pior do que tampar as ruas é vedar nossos olhos, nossa boca, nossa consciência. Essa é a asfixia maior. Ubatuba, atestando uma vez mais a sua exagerada insanidade, recebe a Primavera, toda coberta de preto. Ubatuba veste-se de luto.


Nota do Editor: Márcia Fernandes é professora de música e teatro no Azul Marinho Cultural, em Ubatuba (SP).

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2024, UbaWeb. Direitos Reservados.