A voz aportou embargada, e o destino, pouco crível. O taxista, então, a pediu que repetisse. Dessa vez soou claro: "Me leve até aonde eu possa parar de chorar". Foram alguns segundos a que fechasse a porta, tentando se refazer do estranhamento. Virou-se uma vez mais e, percebendo que não teria resposta pronta, engatou a primeira e partiu. Subiu a avenida Afonso Pena, seguindo com um olho nos sinais, outro no retrovisor interno. Enquadrava com perfeição o rosto da mulher. Tristeza que lembrava peixes em exposição nas bancas de mercado. Ela com o indicador direito atalhando o caminho do choro, desfigurando a maquiagem. O motorista pigarreou, ensaiando uma pergunta, mas desistiu. E tocou à frente, aéreo, que rompeu um dos cruzamentos em sinal vermelho. Ouviu a freada brusca e, súbito, aqueles faróis se agigantando na direção do carro. O corpo formigou-lhe, num misto de vulcão e geleiras. Gritou. Clamou por misericórdia a tudo em que acreditava. E viu o caminhão resfolegando, ar de dinossauro, até que parasse a uma espessura em que coubesse tão-somente a esperança de suicidas. Estava salvo. Estavam salvos. Se voltou ao banco traseiro, buscando a cumplicidade da passageira para aquela celebração mórbida. A encontrou como a deixara. Ainda marejando os olhos. Mas impassível diante da morte iminente. Sequer se movera. Levou a mão à bolsa, tirou de lá uma carteira metalizada, prata. Exibiu os cigarros. Será que ele se importaria? Se importava, sim. Mas relevaria, mesmo alérgico-depressivo. Rinite crônica. Ela acionou o isqueiro, destes de desarmar. Duas tentativas. Com a chama viva, foi possível vislumbrar: ela fazendo atmosfera de Rita Hayworth. Olhar lânguido. O batom besuntando toda a circunferência do filtro. Cremoso, num rosa bem-comportado. Acenou, a que seguisse adiante. E observou: sem alteração de rota. Mas que diabo de rota era aquela, que terminaria aonde ela pudesse parar de chorar? Deteve-se ao perfil: não teria mais que 45 anos, vestia-se bem, não dava sinais de que fosse dependente de álcool ou de droga. E louca, definitivamente, não seria. Portava beleza instigante que não a credenciava ao abandono. Foi elencando alternativas, rumo à região da Savassi, precavido, sem desgrudar a atenção dos sinais. Àquela altura, início de madrugada, pouco restava. Igrejas e templos religiosos não faziam plantão. Forró do Mangabinha passava longe de combinar com a pretendente. Inferninhos eletrônicos não casavam com o perfil. Restava a quietude dos cemitérios e seus velórios, mas achou para lá de ortodoxia. Contramão. O pronto-socorro, a que visse tragédias maiores que as dela e se restaurasse... Não, não... Daí que visitou-lhe a inspiração quase divina, salvadora. Tomou a segunda à direita e partiu em direção ao Santa Efigênia. Dobrou duas, três, cinco ruelas e lá estavam, se aproximando do galpão. Ela pressentiu o apelo ritmado vindo do interior. Transformador. Entregou nota cheia, desdenhou o troco e agradeceu. Importava pouco, nesse instante, por que havia se esvaído em choro até então. A face foi se recompondo, entre surpresa e aliviada. Agora maravilhada. O som do Bartucada, no manejo para o Carnaval, já naquele outubro, varou-lhe a alma. Pedissem, não teria como traduzir. Certo é que se enfeitiçara àquele amálgama de puro contentamento. Talvez lembrasse mãos esculpindo tons e significados. Jeito artesanal de sentir. Tamborim afagando levemente a pele do coração. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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