Tempo é ficção, portanto existe. Foi inventado por falta de assunto. Serve para salvar as conversas. Será que vai chover? Puxa, como o tempo passa. Já são oito horas? Você continua o mesmo. Ah, mas naquela época. Não tive tempo. E por aí vai. Serve também para confundir a imprensa. “Hoje (ontem)” escrevem todos os dias, numa clara demonstração de derrota diante dessa invenção complicada. “Hoje” seria, por princípio, o tempo do autor, do texto, contemporâneo ao ato de escrever. Mas não é bem assim. Ficou sendo o momento da leitura na data em que acontece a publicação. Digo: hoje completo 60 anos. Não é bem verdade. Escrevo dias antes. Mas como a crônica sai na quarta-feira, faz sentido. Então está combinado: hoje, que é este dia 29 (se a leitura for feita depois, paciência, continua valendo), comemoro seis décadas de vida. Grande coisa. Aniversário é de foro íntimo. Mas, para que servem os números redondos, referentes ao tempo transcorrido? Como fico por demais auto-centrado nesta fase do ano, gosto de pesquisar coincidências. No dia 29 de outubro de 1924, por exemplo, o tenente Juarez Távora, que estava foragido da Ilha das Cobras, onde fora confinado por ter participado da revolta de 1922, cruzou o rio Uruguai na altura da minha cidade, Uruguaiana. Chegou no outro lado já como capitão. Revoltou o quartel, tomou as praças e foi em direção a Alegrete, 150 quilômetros dali. Levou um pau e teve que voltar, sob as vaias da gauchada, que não acreditava em farda, apenas nos caudilhos. Pediam a volta de Honório Lemes, o Leão do Caverá, que estava exilado no Uruguai depois que a chamada Paz das Pedras Altas desarmou os combatentes de 1923 e desencadeou a perseguição e matança política na província conflagrada. Convocado pela população em armas, Honório então cruzou o rio Uruguai, vindo de Paso de Los Libres, na Argentina, acompanhado de 800 guerreiros. No pampa não existe leão, mas teve gente que lutou como um. Honório brigou a vida toda e morreu na véspera da revolução de 3 de outubro de 1930. Refugiava-se na serra do Caverá, onde nem polícia nem exército entravam. Foi alfabetizado em casa, escrevia e falava lá do jeito dele. “Se a bala vier por cima”, dizia ele para a tropa, “nós se abaixemo. Se vier por baixo, nós pulemo. E se vier pelo meio, a gente manda ela pará”. Claro que os adversários mudaram o final e completavam a frase com uma conjugação que rimasse com as anteriores. Tipo: “Se vier pelo meio nós se caguemo”. Mas isso era intriga da oposição. O 29 de outubro também marca o início da Grande Depressão de 1929. No próximo ano, vai ser número redondo. Mas é também Dia Nacional do Livro. E a data do golpe militar contra Getulio Vargas em 1945. É uma época de terremotos políticos. Outubro é mês rubro, de revolta e sangue. Meu livro de estréia tem o nome desse mês, que coincide com a primavera e, agora, com o horário de verão. Como o tempo passa, acabei me acostumando a essa invenção para economizar energia (mais um sinal de que o tempo é ficção). Acordo cedo demais e, por pouco, não acabo dormindo ainda com a claridade do dia, que é, como todos sabem, aí pelas dez da noite no novo horário. Como a idade nos transforma em iconoclastas, inconformados e rebeldes, numa retomada da vã juventude, fico bastante encrencado quando usam palavras erradas para nos abordar, nós, os que chegamos cá. O que fizeram com um belo poema de William Butler Yeats, por exemplo, é complicado. O poema diz assim: “When you are old and grey and full of sleep”. Traduziram, claro, para isso: “Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono, dormitando junto à lareira”. Achei muito desaforo. Velha, vencida, dormitando. Parem com isso. Então fiz minha própria tradução, que divulgo aqui, como presente aos leitores: Quando chegar a idade De: William Butler Yeats Tradução: Nei Duclós Quando chegar a idade, grisalha e exausta Caída frente ao fogo, pega este livro E leia devagar, e sonhe com a doçura antiga em teu olhar, e as sombras ao redor Tantos amaram teus dias de glória e graça e de beleza extrema. Alguns eram sinceros mas só um quis saber de tua alma peregrina fisgado na rude mutação do teu semblante Curvada sobre o calor do braseiro sereno Relembra, com pesar, desse amor em fuga Que pousou na mais alta das montanhas De rosto borrado em remorso de estrelas Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe – Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
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