02/09/2025  21h35
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
01/11/2008 - 08h22
A canetinha vagabunda
Guilherme Sardas
 

Haviam dito em algum lugar dali que o estado do cativo era deplorável. O oficial Nereu logo se dirigiu ao cárcere e constatou que era mesmo caso de se fazer algo. Abraçado às pernas, Miro tinha o corpo recostado na lateral do catre e os pés chatos colados no cimento frio. Ao lado, uma pequena bacia desbotada com restos de arroz e sobras da carne enervada de péssima qualidade. Com um saco grande na mão, o oficial bateu a chave na grade, como um aviso, e despejou uma porção generosa da mesma ração insossa que o coitado comia há dias. Retirou-se.

Só algumas horas depois, Miro acordou e matou a fome com dez ou doze punhados do misturado frio. Levantou-se com calma, para que o anel grosso da corrente que prendia seu calcanhar direito não o traísse novamente. Na pele flácida que cobria a canela, via-se os ferimentos que o anel causara, como rabiscos sobrepostos em tons cinzas e avermelhados. Ainda ouvia os barulhos metálicos vindos dos corredores, uns estalos agudos indecifráveis e as vozes de cada um dos oficiais. O que falavam chegava aos seus ouvidos como ruídos bagunçados, pouco compreensíveis, que quase sempre terminavam em risadas.

Tudo aquilo era tão intenso que percebera desde os primeiros cortes no calcanhar que não suportaria por muito tempo. A voz grossa e rouca do delegado era desagradável demais; a falastrice do baixinho subalterno também, e ainda mais insuportável. Agüentava ainda a indecência do olhar cínico do escrevente que às vezes dava as caras por lá e a gagueira vergonhosa de um gordo careca que não largava os papéis e nunca tirava do bolso da camisa um crachá velho e lascado.

Às vezes se punha a pensar em como seria se tivesse a companhia de um carcereiro soturno, um velho decrépito qualquer que desafogasse sua angústia dialogando nas solitárias. Sonhava também com o dia em que aquele grupo sórdido se fosse dali e desse lugar a um outro, renovado, e que certamente demoraria algum tempo até se corromper de vez. Mas não valia a pena. Era nesses dias que mais sentia a bile gritar no estômago e que podia ver seu olhar ganhar um ar colérico por mais que não houvesse um caco de espelho por ali.

Teve um dia em que o gordo careca entrou na cela, inquiriu-lhe sobre dois ou três assuntos, anotou num papel amarelado uns garranchos e saiu apressado apertando as narinas, incomodado com o odor do local. Nem viu que esqueceu sobre o colchão duro e cinza a canetinha vagabunda que costumava prender no bolso da camisa ao lado do crachá lascado. Logo que o homem se retirou, Miro reparou na falha, mas não fez questão de avisá-lo. Também reparou no resto de um melado doce no dedão do oficial e se entorpeceu com o cheiro de chocolate mole que aguçou sadicamente seu paladar.

A canetinha vagabunda ficou ali mofando por uns dias, ornando o cenário triste e vazio: junto ao copo, ao penico, à bacia desbotada e a duas peças de roupa surradas. Numa manhã, uma luz tênue adentrou a janelinha da cela, fazendo no chão uma estradinha iluminada que perpassava a caneta e se apagava rumo ao corredor escuro. Miro pegou o objeto e, primeiro, preencheu toda a mão esquerda com uma frase comprida, desconexa e sem pontuação. Depois, lembrou do rolo velho e deformado de papel higiênico jogado sob o catre, e pôs-se a pintar de letras cada uma de suas folhas ásperas.

O feixe de luz perdeu as margens e, pouco a pouco, foi tomando toda a cela como o brilho intenso e orbital de um enorme holofote. Penetrando o resto da escuridão, um bando de borboletas coloridas e eufóricas recobriu a atmosfera plúmbea em um arco-íris esvoaçante e ilimitado. Do centro da paisagem, nasceu uma bolha alvíssima e cremosa, que se inflou devagar até formar um lençol bojudo. O pano gordo cresceu até desenfronhar, dando passagem a uma passarada barulhenta e desordenada. Aí se viu a revoada planar sem freio, criando pequenas piscinas de água cristalina ao resvalar a superfície do assoalho.

Havia ainda uma mancha negra, quase irrisória, abaixo do cadeado que trancava a cela, mas que foi clareando ao mesmo tempo em que a porta de ferro balançou e se abriu de vez. Miro avistou por entre o colorido o corpanzil do delegado, abrandado por um sorriso agradável. Ao fundo, vinha o escrevente com os olhos espremidos entre as rugas, que lhe davam uma feição risonha e amistosa. Em seguida, o oficial Nereu também apareceu por lá e lhe entregou um farnel enorme e pesado: uma ceia completa de frutas frescas e víveres diversos. Serviu ainda um vinho doce e delicioso numa jarrinha de vidro gorducha.

Como se orquestrasse um espetáculo em clímax, Miro balançava a canetinha vagabunda feito batuta no ar. E, bem aos poucos, as trilhas aéreas dos passarinhos, a correnteza das águas transparentes, o refulgir das borboletas coloridas, tudo foi se aquietando. Miro caiu seco no catre e do teto rebentou um sugar potente e silencioso que aspirou toda a imagem como o olho de um furacão acinzentado, e a luz se despediu.

No dia seguinte suas pernas mexeram cautelosas, viciadas, para não se ferirem no anel traiçoeiro. Seu braço esticou procurando o penico, que não estava lá. Nem as peças de roupa surradas, nem a bacia desbotada. Logo viu a porta de ferro entreaberta e rumou ao corredor escuro sem que peso nenhum no calcanhar impedisse a caminhada. Suas pupilas dilataram na entrada da salinha vazia que não tinha nenhum sinal de vida. E se foi finalmente e totalmente nu raspando as solas grossas do pé sobre o cascalho que tinha fim na calçada.


Nota do Editor: Guilherme Sardas (malhafina.wordpress.com) é jornalista e redator publicitário.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.