- Volta pra cama, Rafael. - Me deixa em paz, Renata! - Você não teve culpa do que aconteceu. - Três garotas morreram e você diz que eu não tive culpa?! - Não foi você quem as matou. - Claro que não! Eu era o cara que deveria tê-las salvado e não consegui. - Rafael, assim como você, havia mais setenta policiais na frente daquele banco. Os seqüestradores mataram as reféns por crueldade. Você e nem ninguém poderia ter feito nada. Coloca isso na sua cabeça. Já fazia quase três meses que o Banco Bassi, na esquina da rua Borges de Lagoa com a avenida Domingos de Morais, na Zona Sul de São Paulo, havia sido assaltado numa quinta-feira fria de inverno. Eram pouco mais de 10h00 quando sete homens entraram na agência carregando fuzis AK-47 e mandaram todos deitarem no chão e anunciaram um assalto. Rafael estava de folga naquele dia e, desde às 10h30, caminhava pelo Parque do Carmo, na Zona Leste da cidade, ouvindo Belchior no seu MP3 e cantarolando músicas antigas como Apenas Um Rapaz Latino-Americano. À tarde ele queria ir ao cinema assistir ao novo filme do Beto Brant. À noite iria pegar a Renata na faculdade e iriam na casa de um casal de amigos que acabara de ganhar o primeiro filho e faria uma pequena recepção para apresentar o mais novo integrante da família Sakamoto. - Porra, nem na folga esse celular pára de tocar! Alô! - Rafael, é o Moura. - Estou de folga, Moura. Não está sabendo? - Estou, mas você já viu o que está acontecendo? - Acontecendo o quê, Moura? Não estou sabendo. - Liga a TV, cara. Tem um puta assalto a banco aqui na Vila Mariana. Tem reféns, cara! A situação está foda! Acho que o Capitão vai te chamar a qualquer momento. - Puta, que merda! Rafael saiu do Parque e foi caminhando para casa, a uma quadra dali, tomar um banho. Assim que chegou, ligou a TV para ver se algum canal dava a notícia. Se assustou ao constatar que dos sete canais abertos, cinco estavam ao vivo mostrando tudo. Ele tirou a roupa e entrou no banheiro, mas o celular tocou na sala e ele voltou pelado para atender. - Tenente Ribeiro? Era o Capitão Silveira, com toda a certeza. - Sou eu, Capitão. - Está acompanhando o assalto? - Sim capitão. - Então, por que cargas d’água você não chegou aqui ainda?! - Já vou capitão. Daqui meia hora estou aí. Rafael desligou o telefone e praguejou contra a sorte. - Miserável de vida. Nem na minha folga tenho sossego. Ainda falei que chego em meia hora. Nem se eu tivesse um motor na bunda. Rafael tomou um banho rápido. Se trocou mais rápido ainda. E foi de moto para não atrasar muito. - Você está atrasado vinte minutos, Tenente Ribeiro. - Foi o trânsito, Capitão. - Não quero saber de desculpas. Vá falar com esses bandidos e diga para eles se entregarem agora. - Sim, Capitão. Rafael achava o Capitão Silveira um sujeito insuportável. Nada para ele estava bom. E em toda negociação ele orientava do mesmo jeito. Falava para Rafael dizer para os bandidos se entregarem. Mas, se os bandidos quisessem se entregar eles já o teriam feito. Não precisava de um negociador para isso. Não precisava do Rafael. Então, ele reclamava que o Capitão Silveira achava tudo fácil, mas nunca colocava o traseiro dele na reta, só o dos outros policiais, só o do próprio Rafael, principalmente. Tudo era Rafael resolva isso, Rafael resolva aquilo e ele reclamava já estar de saco cheio. - Ei, meu nome é Rafael, sou um negociador da Policia Militar. Vejam, estou desarmado. Minha função aqui é saber de vocês o que está acontecendo. O que vocês querem para soltar os reféns e sair todo mundo ileso dessa situação toda. - Nós não queremos machucar ninguém, policial, mas vocês estão querendo invadir e, se invadirem, muita gente vai morrer. Depois de alguns minutos de conversa, a análise da situação estava feita. Rafael acreditava que eram bandidos com alguma experiência, mas delinqüentes comuns. O problema maior é que os assaltantes estavam muito bem armados. Eram sete, segundo informações de pessoas que viram o assalto começar. - Capitão, os caras não estão muito afim de negociar. Eles querem fugir. Estão fazendo ameaças de matarem os reféns. Penso que se eles acharem que vamos invadir o banco, matarão mesmo. - Mas quem eles pensam que são?! Aqui nós damos as ordens e eles obedecem. Se esses idiotas não saírem logo desse banco, nós vamos entrar e matar os sete. Rafael nunca entendeu como o Silveira se tornou Capitão. Ele era burro e truculento. Ser negociador sob suas ordens era sempre uma árdua tarefa. - Já são quase 5 horas, Rafael, e esses bostas não se entregam. Acho que isso não vai terminar bem. - Vira essa boca pra lá, Moura! - Daqui a pouco vai anoitecer e aí que as coisas vão ficar mais tensas por aqui. Ainda bem que já estou indo embora. - Você indo embora, porra?! A merda está fedendo aqui e você pensando em ir embora?! Está louco?! - Eu comecei hoje às 6h00, Rafael! Estou por quase 12 horas trabalhando, cara! Eu não fui passear no parque não, bonitão! Vá se foder! - Ih caramba, lembrei que preciso telefonar pra Renata. Íamos sair hoje à noite. Fodeu tudo. O relógio correu rápido e quase meia-noite Rafael ainda tentava uma rendição dos bandidos. Falava com o líder do grupo quando escutou um disparo, uma gritaria, e de dentro do banco escutou o zumbido de uma bala que voava rápida em direção ao seu peito. Sentiu um impacto forte no colete a prova de balas. Por sorte não veio de nenhum fuzil, mas de uma arma comum. - Porra! Quer merda! Tomei um tiro! Tiros foram disparados por todos os lados. Quatro seqüestradores foram mortos. Três foram feridos. Três reféns, mulheres, funcionárias do próprio banco, foram mortas. Outras oito pessoas, entre funcionários e clientes, saíram feridas. Investigações mostraram que tudo começou depois de dois tiros dados por atiradores de elite, que eliminaram, assim, dois bandidos. Outros cinco reagiram à invasão da polícia ao banco. De lá para cá, Rafael nunca mais dormiu tranqüilo. - Foi tudo culpa do Capitão, né Rê? Eu sei que foi. Mas, sei lá, eu me sinto culpado por não ter conseguido fazer aqueles caras se entregarem e ter salvado as garotas. - Volta pra cama, amor. Isso já passou. Você não tem que pensar nas vidas perdidas e sim nas vidas que você ainda vai ajudar a salvar. - Você é linda, Renata. Me ajuda tanto. Tem tanta paciência comigo. Sei que não estou uma boa companhia ultimamente. - Eu te amo, bobinho. Me abraça, vai. Rafael se matou com um tiro na boca, dois dias depois, trancado no próprio banheiro de casa. No mesmo dia do suicídio, Capitão Silveira recebia uma homenagem, da Assembléia Legislativa de São Paulo, por serviços prestados à população paulista, como policial. Até uma medalha por agilidade e bravura ele agora carrega no peito. Moura virou o novo negociador da equipe do Capitão Silveira e tem andado mal-humorado por ter que, algumas vezes, atravessar noites negociando com bandidos. Ele reclama que já está de saco cheio. Nota do Editor: Fábio de Lima é jornalista e escritor, ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO, com publicação (ainda!) em data incerta.
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