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Crônicas
08/11/2008 - 16h04
Jornalismo é estiva
Nei Duclós
 

Porta silenciosa quando fecha não serve para bater com força, fazendo desaforo. É inesquecível a cena do clássico Play-Time, de Jacques Tati, em que o chefe dava uma tremenda bronca no subalterno e se retirava da sala, tentando fazer estrondo na sua saída. Não causava impacto, pois tudo ocorria no estande de uma feira de inovações para escritório. É impressionante a atualidade do filme, que mostrou com antecedência o clima asséptico que tomou conta do mundo profissional.

Seria injusto acusar as redações atuais de assepsia, já que não entro mais nelas (não sou convidado; aliás, jamais me convidaram, eu é que fui lá cavar a vida). Mas não imagino outra coisa. Sem fumaça de cigarro, sem barulho de tecla e sem gritos de uma editoria para outra (hoje todos devem ostentar aquele fone de ouvido up-to-date, feito a Ana Maria Braga): eis o admirável mundo novo em que nenhuma pauta deve se incorporar na mediunidade do office-boy (ou editor de continuidade) ou ser sugerida no corredor (governança de circulação), no cafezinho (coffe-break space) ou no fumódromo (que fica ao lado da lixeira).

Também não devem ser permitidas visitas, como a que eu recebia do Antonio Bandeira, o mímico mais loquaz do mundo. Por várias tardes, ele foi lá na Folha de S. Paulo dos anos 70 conversar comigo. Eu trabalhava na Ilustrada do Tarso de Castro. “Gostei muito do seu livro”, me disse ele. “Outono...” e olhava para o infinito, me deixando desarmado para corrigi-lo, avisar que o título certo era outro. Ou quando Paulo Leminski veio falar comigo quando eu editava a seção de Livros da revista Senhor, nos anos 80, do Mino Carta. Tomamos algumas no Barba, o bar que ficava (ou ainda fica) em frente ao prédio monstruoso da Editora Três (situado ao lado da linha do trem, na Lapa de Baixo).

Deve ser hoje proibido beber em pleno expediente. Na Ilustrada, depois que eu colocava alguns acentos no texto contundente do colunista Plínio Marcos (que um dia me chamou, em vão, para a briga depois de um bate-boca), íamos, o editor e eu, tomar algo numa sinuca ali na Barão de Limeira. Ficávamos no taco e na cerveja e às vezes, conforme o stress, no steinheger, até as cinco da tarde. De lá, saíamos prontos para o fechamento, que acabava às oito horas, quando voltávamos para a gandaia. Faz tempo que não bebo nem recomendo, mas devemos fazer justiça à memória. Quando você se transforma num catequista, lembre quando fazia parte do gentio. É bom para a tosse.

Na Ilustrada, Angeli costumava dizer que seu pesadelo era uma redação, no futuro, de pessoas deslumbradas e sorridentes, que naquela época eram minoria (a moda dos cursos de jornalismo ainda estava engatinhando). Naturalmente que sua profecia não se concretizou, mas a imagem que faço hoje de redação tem um pouco desse “puxa puxa puxa”, que no fundo vejo no noticiário. Dizem que a audiência do Jornal Nacional caiu. Deve ter diminuído o número de Homers Simpsons. As pessoas hoje são mídia, não apenas consumidores. Produzem textos, notícias, interferem na linguagem, enchem bem o saco. Não somos mais observadores de caras e bocas e ruguinhas significativas na testa.

Jornalismo é estiva. Acredito que a súbita viagem de William Waack, no Jornal da Globo, para cobrir a eleição americana, se deve ao fato de que se trata de um baita jornalista, repórter e editor de primeiro time, que precisou ocupar o vazio deixado por quem foi mandado para lá e apareceu de barba por fazer falando obviedades. Para dizer bobagem basta ficar em casa postando. Não precisa carimbar o passaporte. Eu admiro especialmente os grandes repórteres. Quando vejo a lista dos premiados nos concursos que fazem a nível nacional, fico feliz pela quantidade de coisa boa que se produz no jornalismo brasileiro, apesar de tantas críticas e de tantas idiotias tomando conta dos espaços.

Nem quero lembrar o esforço brutal que foi dedicar uma vida ao jornalismo, dobrando as costas em inumeráveis redações, fechando sem parar, lendo até gastar totalmente os olhos, abrir trêmulo no dia ou na segunda-feira seguinte o jornal ou a revista e ver lá, estampada, a magnífica matéria que você produziu ou editou. Ou, pior, quando vê, explícito, o erro que passou lotado por editorias e revisões e gráficos e permanecerá para todo o sempre como algo irremovível, a assombrar tua Terceira Idade.

Mas quem lutou o bom combate não tem nada a temer. Os veteranos abençoam a gurizada que hoje vai à luta, com ou sem redação silenciosa. Sabemos que esta profissão, bandida, pesada, bruta, mal-remunerada, é a melhor coisa que nos aconteceu em vida. Entramos nela provincianos, confusos, ignorantes. Saímos dela, ou continuamos nela, mas em outros termos, mais fortes, menos arrogantes. E se quiserem me convidar para a happy hour depois do fechamento, estou disponível.

Juro não contar histórias, que isso aborrece os mais jovens. Nem vou tomar nada, minhas condições físicas não permitem. Mas posso contar como se faz quando nos desligamos desse mundo e ficamos em casa, inventando uma redação à parte, onde o editor é Deus e você, um pobre redator ainda na véspera da Criação.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe – Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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