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Crônicas
13/11/2008 - 17h03
Cronos e Narciso
Pedro J. Bondaczuk
 

A vida é um evento tão rápido e misterioso, é tão efêmera e inconstante, que passa como um piscar de olhos. Mal nos damos conta quando crescemos, amadurecemos, envelhecemos e... zás! Mistério... Simplesmente "deixamos de ser". Partimos ou para a anulação absoluta (o nada), ou para algum lugar de onde ninguém jamais voltou para explicar se de fato existe ou onde e como é. Se há ou não continuidade da vida, em alguma outra dimensão, despidos do corpo físico, é uma discussão interminável dos místicos (e dos fanáticos). Foge do racional.

E morrem de velhice apenas os cada vez menos numerosos que têm esse privilégio e não são "arrancados pela haste", como uma frágil flor, pelo "acaso" travestido de alguma súbita doença, de algum desastre ou dos cada vez mais freqüentes atos de violência alheios. Um número crescente de pessoas é eliminado por um desses fatores sem chegar aos cinco, dez, quinze, vinte ou cinqüenta anos.

Dois objetos, criados pelo engenho humano, são simbólicos da passagem do tempo e dos estragos que esta "ronda implacável" da decadência faz sobre a estrutura física: relógio e espelho. O primeiro marca a passagem dos segundos, minutos e horas que, somados, compõem os dias, que escoam velozes. O segundo reflete as transformações externas, que nem sempre notamos – não pelo menos com constância – em nossa aparência.

Quando adolescentes, são o surgimento de espinhas, dos primeiros fios de barba, dos indícios de amadurecimento. Passados dos quarenta, vêm os cabelos brancos, a calvície, as primeiras rugas, as sombras sob os olhos etc.: os vestígios de decadência. Relógio e espelho... Ambos "trabalham" para o mesmo implacável e abstrato senhor: o Tempo.

O primeiro marca o quanto nos resta de vida, sem que nos demos conta da necessidade de aproveitar cada um dos instantes que fogem, já que certamente não teremos uma segunda chance. O segundo, posto que inconscientemente, na sua condição de objeto inanimado, mostra coisas que preferiríamos não saber sobre a decadência do nosso físico.

Felizmente, não alcança refletir nosso espírito e nosso raciocínio. No meu caso, revela-me, por exemplo, que meus dentes se estragaram, após ficarem manchados de nicotina e começarem a cair, por falta de tratamento, necessidade difícil de ser atendida, dado o alto preço cobrado pelos dentistas. Faço parte, portanto, da imensa legião de banguelas existentes no País. Afinal, o Brasil é o recordista mundial dos desdentados!

Além disso, o espelho denuncia as permanentes e crescentes olheiras que ostento, resultado de intensíssima leitura e de noites e mais noites de estudos e de texto. Exibe, com a maior desfaçatez, as entradas que ameaçam se transformar em calvície, que começaram com um círculo no centro da cabeça, semelhante às tonsuras dos monges, e evoluíram pelas laterais, mostrando uma pele branca e lustrosa.

Se, pessoalmente, estes dois objetos me causam aflição e até certo temor, pelas incômodas revelações que fazem acerca da minha aparência, machucando a minha vaidade, vingo-me deles e transformo-os em temas de centenas de versos. Dou sempre um jeito para que estejam presentes no cenário dos meus contos. Faço com que sejam símbolos de decadência e de efemeridade, que realmente são.

Infeliz descoberta humana! O espelho, por exemplo, teria surgido da imitação de um lago, que reflete a imagem daquilo que o cerca. Foi a causa do desvario do personagem mitológico Narciso, que se apaixonou perdidamente pela própria figura refletida na água, posto que distorcida. Hoje, inúmeros intelectuais agem da mesma forma. São impermeáveis a críticas e por isso ficam expostos ao ridículo. Apaixonam-se por sua imagem e julgam-se sábios. São uns Narcisos...

Cecília Meirelles, em seu poema "Canções", utilizou esse objeto como tema literário, nestes magistrais versos: "Quando meu rosto contemplo, / o espelho se despedaça: / por ver como passa o tempo / e o meu desgosto não passa. / Amargo campo da vida, / quem te semeou com dureza, / que os que não se matam de ira / morrem de pura tristeza?".

No meu caso, porém, há muitas diferenças entre o que a poetisa descreve e a minha visão de mundo. E nem poderia deixar de ser assim, já que nossas realidades de vida são heterogêneas. Em princípio, embora o acaso tenha sido perverso comigo em muitas circunstâncias – por exemplo, o fato de eu haver contraído a poliomielite – não tenho um desgosto tão renitente, a ponto de nunca passar.

Ponderando bem, meus momentos felizes são em muito maior número do que os que me desgostam. Por conseqüência, não considero o campo da vida amargo. Acho-o dulcíssimo. Tanto que gostaria de viver – na impossibilidade de ser eterno – os 983 anos de Matusalém ou chegar às marcas multicentenárias de outros patriarcas bíblicos. Não estou morrendo de tristeza. Vivo a plenitude da alegria de exercer o que mais gosto de fazer: escrever.

Talvez ajude a postura que assumo no meu cotidiano. Tenho escassos desejos. Não me alimento de esperanças e ainda assim não sou amargo. Até porque, as coisas boas que me ocorreram, em linhas gerais, foram as absolutamente inesperadas. Quando esperei, ansioso, que algum evento ocorresse, invariavelmente me frustrei.

Daí concordar com os versos do poema "O fumo", escrito no século XVII por Marc Antoine de Saint-Amant, que dizem: "Nenhuma diferença a minha mente alcança / em fumaça o tabaco ou viver de esperança: / um é simples fumaça, a outra é apenas vento".

Creio haver justificado, pois, a razão do temor e do respeito que tanto o relógio, quanto o espelho, me despertam. Não quero testemunhar a passagem do tempo. Recuso-me a conferir os estragos que ele me faz. Desejo usufruir cada segundo, como se fosse o derradeiro da vida que, no dizer de Manuel Bandeira, "é um milagre". E como é!


Nota do Editor: Pedro J. Bondaczuk é jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – pedrobondaczuk.blogspot.com.

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