02/09/2025  21h37
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
14/11/2008 - 17h02
Foi o mundo quem não compreendeu
Eduardo Murta
 

O gosto pelo extremo começou ainda na infância. Lomelino mal fora apresentado ao mundo, ganhando noções de soma, subtração e leitura, e vieram os professores avisar: arrumassem médico, que o menino sugeria ter bambos todos os parafusos do cérebro. Sumido por uma noite, seria encontrado manhã seguinte enlaçado aos troncos de fícus.

Fora singelo na explicação: queria sentir na pele uma madrugada como coruja. E a diretora que não lhe mirasse daquela forma atravessada. Ou ela achava que o que se aprende na sala de aula devesse ficar confinado a suas paredes? Justo que não, mas onde morava mesmo a linha do equilíbrio, menino? Foi perceber que, para ele, aquilo simplesmente não existia. Dias à frente, apareceu nu na porta da escola. Se o ser humano viera assim à existência...

A família dera então como caso perdido. No lugarejo, acabou catalogado como louco manso. Nem ligava. Nutria lá sua convicção de que talvez fosse só uma forma diferente de enxergar as coisas. Acabou sendo, porque voltou a estudar. Se formou, como quase todos. Constituiu família. Tudo a seu modo, claro. Ainda que evitasse as ortodoxias absolutas. Do contrário, sabia, terminaria em camisa-de-força.

Não parou, porém, de espantar. Soava a um bicho, dos 15 aos 21. Cabeleira à cintura, barba assomando-se aos limites da sobrancelha, beirando o peitoril. A idéia peculiar era reproduzir traços do Homem de Neanderthal, agora objeto de suas pesquisas. Cunhou lança, flecha, instalou armadilhas artesanais na mata fechada. Por longo tempo sobreviveu do que caçava. E só mulher, por exato como pensavam os pais, daria jeito naquilo.

Veio uma matuta. Virgem. Das bravas. Encontro casual em beira de riacho, e um mês depois se anunciou namoro, gravidez, casamento. Passou a barbeado, penteado. Parecia no prumo. Parecia. Até começar a andar pela casa e nas ruas com os olhos vendados. Achava que assim se revelariam a ele os porões da cegueira, da capacidade de iluminar o sexto sentido. Terminou em conflito, separação.

E, vida nova, um amigo estremeceu, então, ao confirmar: virara habitué dos puteiros da Guaicurus. Descobrira, lendo Freud, não só uma face incendiária do desejo, mas uma vontade quase magnânima de debruçar-se sobre os dilemas da alma. Por vezes, pagara só para trocar confidências com as mulheres. Ouvir. Concordar ou plantar mais dúvidas aos vãos existenciais das putas. Era lá conhecido como “O Doutor”.

Para encarnar o papel, se escolara no manejo do cachimbo, julgando que conferia ar professoral às sessões. Recorreu à hipnose. Cadernetas de anotações. Alinhavou intimidades, manteve dissimulado ar de distanciamento. E foi literalmente ao gozo, sob a tese incontornável de que as pacientes se apaixonariam pelo analista. Se apaixonaram perdidamente. Não tratou nada como pecadilho, levando à risca o argumento de que a repressão era má conselheira.
 
Seguiu nesta rotina até se enjoar, se recolher para um novo ciclo. Os pais sem a mínima ciência do que significava aquela penca de livros sobre a escrivaninha, no quartinho dos fundos. Idioma um tanto estranho. Seriam, revelou mais tarde, suas primeiras incursões ao aramaico. Capricharia nas conjugações, concordância. Sobretudo na entonação. Já tinha decorado como se apresentar, na língua natal, a ninguém menos que Jesus. Falou baixinho, pediu somente discrição a pai e mãe, porque a vizinhança sabendo, imaginem, acabaria por tomá-lo como louco. E injustiças desse porte ele jamais compreenderia. Jamais.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.