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Crônicas
15/11/2008 - 12h00
Sobre a ética
Júlio Nóbrega
 

Observar o rosto amassado, de desânimo e, principalmente, raiva no espelho do banheiro, em uma manhã de segunda-feira, logo após o pulo da cama, é algo mais reflexivo do que literalmente parece. Essa é uma constatação minha. É o momento do dia em que nada me tira a atenção, o que torna possível uma análise mais profunda sobre nossa insignificância perante a sistemática da necessidade.

Trabalhar é necessário. É por ter isso em mente que me levanto todas as manhãs. Após a reflexão inicial, vem o banho. Com ele, vem o preparo psicológico para viver o dia. Enquanto a água cai, passo pelo momento da programação, aquele em que penso no que terei de enfrentar em mais um dia de labuta. Existem dias em que saio do chuveiro e penso que vai ser moleza; já em outros, saio acelerado, até mesmo atrasado, já prevendo momentos de insanidade; tem também os piores dias: os de surpresa, aqueles em que penso que tudo vai ser fácil e, de repente, surge na minha mão uma "bomba química", capaz de se subdividir em várias outras.

No meu caso, me arriscaria a afirmar que o terceiro tipo de dia é o mais comum. Vida de jornalista é assim, ainda mais quando se está fora de uma redação e dentro de uma grande empresa do ramo financeiro. Raramente alguém fora dos limites da área de comunicação sabe ou tem competência sobre o assunto, salvo os assessorados, que, na maioria, não são tão bem assessorados assim, ao menos sobre o foco do meu trabalho: a comunicação interna.

Portanto, é óbvio: surgiu problema de comunicação, é demanda para minha área. Aliás, os problemas comunicativos de uma empresa sempre ganham dimensão ampliada, afinal envolvem a imagem corporativa, a imagem e a compreensão dos funcionários e também a imagem das lideranças. Nessa última é que reside meu problema. No começo eu me perguntava: "Mas os líderes não são assessorados?". Com maior experiência no mercado, concluí que são assessorados para lidar com a imprensa e com os meios de comunicação, mas não com o motor que impulsiona suas respectivas glórias: os funcionários. Por esta questão, tento superar o desafio imposto pela lógica de quem comanda e não conhece comunicação.

Entrar no carro todos os dias e ir para essa batalha não é fácil. De casa até o trabalho dá tempo de pensar em mais algumas providências, agendar as rotinas mentalmente e, claro, rezar para tudo dar certo e para que eu volte ao lar com o mínimo de estresse possível. Já no edifício, a caminho dos elevadores, vem a tensão e a certeza de que minha paz diária sofrerá, em alguns instantes, uma pausa prolongada. Ao saltar no 17° andar, onde está minha "estação de trabalho" – sinceramente, não entendo esse nome –, adentro a sala exatamente às 08h23min. Em seguida, observo as três pessoas que chegaram antes de mim, dois funcionários ao fundo e o estagiário monossilábico que senta próximo a minha mesa, um sujeito o qual não me recordo ter escutado a voz. Mesmo assim, todo dia continuo a tentar.
- Bom dia! – falo com a voz imponente, como se quisesse demonstrar seriedade.

Mais uma vez não deu. O máximo que consigo em troca é a básica balançada de cabeça. Fica para amanhã. Resta pensar na próxima etapa: ligar o computador e fazer a atualização matinal do jornal interno on-line. Antes de acessar o sistema de publicação, vale conferir o e-mail e checar a pauta do dia, determinada pelo gerente que não é editor. Isso fica claro quando, em mais uma manhã, me decepciono com sua lista de destaques. Matéria principal: "Presidente se encontra com empresários em São Paulo"; segunda matéria: "Presidente inaugura restaurante comunitário em Diadema"; terceira: "Vice-Presidente de Finanças assina acordo com produtores de pequi"; o quarto destaque é o melhor, um artigo de opinião do vice-presidente de apoio logístico sobre a crise econômica: "Que crise o quê?". E-mail lido, publicação feita e uma dúvida: trata-se de um jornal interno ou coluna social da empresa? No andar da carruagem, daqui a pouco membros da diretoria terão até as férias documentadas. Enfim, depois de pensar em tantas coisas desde o momento em que acordei até aquele, atinjo o estágio comum de todos os dias: a frustração. Mais uma vez, o público do jornal, o funcionário, foi deixado de lado e minhas tentativas e planos para reverter a situação foram por água abaixo.

Primeira parte do trabalho pronta, hora de partir para as matérias que ainda devem ser feitas. Antes, claro, uma passada pelos sites jornalísticos, para conferir as principais notícias do dia e manter-me informado. Opa! Sempre me esqueço: não tem internet. Para cortar gastos e manter a ordem, a empresa adotou uma política rigorosa de internet, após constatar que 70% dos funcionários usavam a grande rede para assuntos não relacionados ao trabalho. Portanto, não resta outra opção. O jeito é partir para a elaboração das matérias, desinformado mesmo.

No que abro minha caixa de e-mail para verificar os textos pendentes, toca o telefone.
- Bom dia, Lucas!
- Bom dia, Borges!
- Lucas, preciso que venha à minha mesa. Temos um assunto delicado para tratar e que deve ser motivo de matéria no jornal.

Direcionei-me à mesa do chefe. Lá encontro o velho Borges, 26 anos de empresa e mais alguns de sonho: amava a literatura e o cinema. Queria viver de livros e de filmes. Até que conseguia publicar suas obras, mas os projetos cinematográficos eram caros e difíceis de progredir. Sem conseguir a sobrevivência por meio da arte, se rendeu ao posto de gerência. Já em fim de carreira, buscava aproveitar o posto de confiança na esperança de aposentar-se na posição. Seu objetivo era fazer tudo o que os superiores pediam e não ser incomodado. Funcionava à base da abdicação do espírito crítico e da mais pura falta de personalidade.
- Sim.
- Lucas, temos aqui uma demanda do vice-presidente da área tecnológica. Ele quer que publiquemos esse balanço de um mês da política de internet. Os números são bons. Dê o teor que transpareça que essa é uma ótima medida. Temos de fazer com que os funcionários enxerguem algo positivo nisso.

Peguei o documento com os dados e voltei à "estação de trabalho" – denominação incompreensível. Sentei, abri o editor de textos e voltei os olhos para o documento. Não acreditei que aquilo poderia ser considerado foco de matéria para os funcionários. Na verdade, tomei um susto e me dei conta de que a diretoria agia como a rainha Maria Antonieta, que não entendia o motivo do povo francês não comer brioches. Era o símbolo da mais simples falta de conhecimento sobre o público interno. Não titubeei e peguei o telefone.
- Borges, bom dia!
- Borges, sou eu, Lucas. Meu caro, não podemos publicar isso.
- Como não? É demanda da vice-presidência, temos de publicar.
- Você não viu os dados? Isso seria colocar gasolina em um barril de pólvora prestes a explodir.
- Não vi. – uma afirmação que me deu nos nervos. Como um gerente trata o material de seu trabalho assim?

Fui até a mesa de Borges. Mostrei-lhe o material.
- Borges, esse balanço fala que, com a política de internet, "65% da rede está livre para melhor uso de nossos clientes". Como assim? Que efeito terá se publicarmos em um jornal que deveria ter assuntos interessantes para o funcionário essa informação, com esse tratamento? O funcionário quer prioridade. Como ele se sentirá em desvantagem perante terceiros?
- Humm... Corte "de nossos clientes". Deixe até "melhor uso". Assim ninguém incomoda.
- Como assim? Não é questão de incomodar. Temos de ter transparência. Se não há de termos a devida, que nem publiquemos essa informação. É o melhor a ser feito.
- Não. Lucas, o vice-presidente pediu. Vai ter que sair!
- Borges, é seu dever levar isso aos superintendentes. Eles que discutam isso com o vice-presidente. Mas a verdade é que assim teremos problemas com essa publicação.
- Lucas, olha só. Vamos acabar com isso, vamos? É só retirarmos algumas peças. Que tal outro foco? Se 65% está livre, 35% está em uso. Pronto! Falamos que a política estabilizou a rede e reduziu o acesso em 35%. Resolvido.
- Borges, isso é loucura. Apenas os gerentes da empresa continuam com acesso livre. Isso significa que 35% é usado por uma parcela muito pequena de pessoas. Além de revoltar mais o funcionário, que, convenhamos, não gosta da política de internet, proporcionaremos a ele mais um motivo de indignação: a falta de vergonha do gerente.
- O quê? Está dizendo que não tenho vergonha? – olhou para a tela do computador, que mostrava a página de um hotel em Cancun, e mexeu no mouse para fechar, estabanadamente, a tela.
- Não, Borges. Não, Borges. Dei os motivos para que isso não saia. Esse é meu dever.
- Ok. Vamos esquecer tudo isso. Faça a matéria como deve ser feita. Destaque para hoje à tarde.

Retornei ao posto e redigi.

No fim da tarde, Borges andava sorridente entre as "estações", em direção à minha.
- Lucas, parabéns! Ficou ótima. Você omitiu bem os aspectos conflitantes.
- Não me sinto bem com isso, Borges. Sabe disso.
- Sei sim, mas... esqueça isso. Vale o que vem de quem vale mais – e deu a risada irônica – Aliás, o vice-presidente me pediu para cumprimentá-lo pelo bom trabalho.

Em seguida, abri a caixa de e-mail do jornal interno. Havia até as 18h30min, três horas após a publicação, 534 reclamações sobre a matéria, algumas até de representantes sindicais que têm informações privilegiadas. Um recorde. Avisei ao Borges, mas ele, com toda frieza, talvez consolidada pelos anos de frustração, disse apenas "Apague-as".

No fim do expediente, retornei ao lar. Tomei banho, jantei, assisti aos programas da TV e deitei. Pensei que tinha sido mais um simples dia; mais um em que escondi as falhas. Concluí que não atuava como jornalista, mas talvez como maquiador. O objetivo da maquiagem é mais que embelezar. É esconder realidades.

Na manhã seguinte, acordei, levantei-me e fui ao espelho. Chamei-me de maquiador, sem desmerecer o ofício real, e prossegui a rotina, até chegar ao local de trabalho novamente. Segui a força da sistemática da necessidade, que, na prática, está acima da ética. Isso é um problema.


Nota do Editor: Júlio Nóbrega é jornalista, pós-graduado em Assessoria em Comunicação Pública.

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