O velho marxista enterneceu-se, dia desses, ao suspeitar que o filho saía com amigos para pichar palavras de ordem contra o governo, da mesma forma que ele fizera quando ainda janotinha de universidade. Tal pai, tal filho – disse de si para si, pleno de orgulho. E a suspeita confirmou-se, ao encontrar na mochila do adolescente uma lata de tinta spray preta. É, a mesma de décadas atrás e que todo saudosista conhece. Numa dessas escapulidas do guri em plena madrugada, seguiu-o. Queria experimentar a emoção de ver o seu pimpolho em plena atividade ideológica – infelizmente, algo quase démodé entre os jovens de hoje. Viu que o carro da turma (seria uma célula?) despistou pelas ruas do bairro e estacionou, minutos depois, defronte a um sobrado com a tinta da fachada ainda fresquinha. O filho saltou e escalou o prédio até o alto. Lá em cima, grafitou desenhos e inscrições ininteligíveis até para a KGB. E só. Nenhum discurso, nenhuma panfletagem. E o pai voltou para casa derrotado pela dúvida: afinal, que revolução seria essa já em curso? Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de O Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro, além de O Globo. Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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