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Crônicas
29/11/2008 - 08h03
Afaguem a dor de Esmeraldina
Eduardo Murta
 

O signo da rigidez quase medieval havia dado – ou tirado – o norte à vida da pequena Esmeraldina. Notem, é ela, aos 6 anos, ganhando altura ao banco de madeira para se derreter no manejo do fogão a lenha. Conchas que davam vez e meia a extensão dos bracinhos. Gastava ali boa parte da manhã na fazenda. Depois de já ter varrido o quintal, a casa, alimentado os porcos, molhado as plantas...

Não havia, assim, cenário que a instigasse mais que a chácara vizinha. Um bando de meninos e meninas que consumiam o dia em gargalhadas, lembrando singela conspiração de alegria. As bocas derivando em coloração de amora, de amor, entre o vermelho e o negro. Como sorria vendo aquilo ao longe. Tinha ânsias em fugir.

Ao limite da janela, gargalhava. E, súbito, se recompunha. Seriedade de sentinela inglês ao vago sinal de que o pai se aproximava. Conhecia seus passos, transmitindo um rangido oco às tábuas corridas logo na entrada. Pisada firme em botas. O odor de cigarro de palha terminava por denunciá-lo. Vindo do pasto, cheirava também a cavalo extenuado. A atmosfera se convertendo em doses de repugnância.

Chegando, curvava-se para tomar-lhe a benção. Beijo solene no dorso da mão, sem troca cúmplice de olhares. Sem gestos de carinho. Ah, odiaria aquilo por todo o sempre. Recolhia-lhe o chapéu, preparava a bacia fresca de água, cuidava dos arranjos da mesa para o almoço. E ai dela ao mínimo vestígio de que bisbilhotara a folia da vizinhança. Cumpriria tardes inteiras de rosto colado à parede, os bagos de milho cravando-lhe os joelhos. E que não derramasse uma só lágrima.

Esmeraldina tomou a lição ao pé da letra. Família e amigos contam que jamais fora vista chorando. Nem na morte do pai, anos à frente, em que, já mulher, digeriu os sentimentos num silêncio beirando a ortodoxia sacra. De resto, tocara a vida – trabalho, paixões platônicas – como que circunscrita ao quadrado em que a figura paterna a inscreva. Hermeticamente fechada.

Não era casual, portanto, que tivesse aderido aos figurinos sóbrios. Tons opacos. Golas protegendo o pescoço. Decotes, nem os insignificantes. Muito menos saias à altura das coxas ou calças que revelassem as curvas do corpo. Seu ofício, então, cairia perfeito ao perfil que lhe fora moldado – o despacho burocrático de papéis em repartição pública. Ambiente mal-iluminado, umidade de porão. Gerencia um arquivo morto.

Os óculos em lentes grossas ajudavam a reforçar a imagem que se fizera dela. Estranha. Triste. Ensimesmada. Solteirona. Há quem conte que, num raro momento, sorrira. Dialogava com as samambaias à varanda, e deu com a algazarra típica de meninada na vizinhança. Gritavam, feito fossem passarinhada. Se mirou ali, menina, deixou que o sonho lhe emprestasse mãos.

Foi cena de sorriso estampado, descrevem. Como nunca houvera se permitido. Tarde ou não, ela agora se prometia a primeira festa de aniversário. Única, talvez. A caminho dos 80 anos, queria celebração. Chamou os que julgava indispensáveis. Eram poucos. Pôs conjunto em estampa floral – decotado, saia curta. Dançou. Provou da cachaça. Gargalhou tresloucada. Chorou um oceano de privações. Mas, o essencial, estava feliz. Espocou um a um os balões, com palito, com os pés, as unhas, os dentes. Como destroçasse o que simplesmente não pudera remediar. Deflorasse angústias em tardia, porém reparadora despedida.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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