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Crônicas
07/12/2008 - 12h01
Zé pegou atalho no cortejo da alegria
Eduardo Murta
 

Zé Coelho tem definição para lá de reta sobre a missão de cada um por esses cantões afora: ser humano baixou aqui para ser feliz. E ponto. Trata com simplicitude qualquer dissabor. Cólica renal: chá de caninha-de-macaco. Dívidas: a caixinha generosa de Dona Marieta, mesmo com juros de agiota. Insônia: pacto de cumplicidade com a Lua. Dor de amor: beber até chorar feito fosse menino, desidratar a alma e, na matemática dos acontecimentos, invocar ao menos compaixão.

Era ele exatamente neste enclave existencial, às 11 horas da manhã, plena quarta-feira, ancorado a uma das mesas do Bar do Alípio. Cinco cascos de cerveja, duas doses curtas de pinga, o maço de cigarros intocado, mera provação. E aquelas roupas que fariam qualquer um confundi-lo com um bicheiro. Blusa assumidamente estampada, calça branca, sapato branco. As pulseiras, anéis e colares em ouro, reluzindo a quarteirões dali.

Firmava que discrição era, no fundo, falsa virtude. Teatro de sombras, nada mais. Esperava assim que Divina lhe brindasse com um segundo que fosse de atenção. E marcou no relógio o momento em que ela cruzaria seu caminho. Não fizera contas outras desde que ouvira um "vá embora!!!" encorpado na tarde do domingo. Ela cada vez mais furiosa com os atrasos. Não tolerando o argumento de que fundamental era desfrutar dos cortejos da alegria, pelos botecos, e partilhar-lhe o coração encantado mais tarde.

Sequer se comoveu com aquela maçã do amor, caramelada, presente de Dia dos Namorados. Nada mais chinfrim, foi a frase que ficou ecoando, enquanto ela dobrava a esquina, o vestido em laranja vivo serpenteando as paredes, emblemático. Zé Coelho contou de 0 a 10, se assegurando de que ela voltaria. Estendeu aos 20, 50. Parou no 213. Começou a buscar saídas. O cunhado mais velho, conselheiro da família. A sogra, ponderada. A amiga confidente. Em vão.

Essa soma de insucessos o convertera em sofisma de tudo o que pregara até ali. Era agora nada além de um reles verme rastejante. Acabrunhado. A ponto de cachorros lamberem-lhe a boca nos cantos do botequim. Pior – ele gostando. Daí já se elencavam oito dias em que se metera naquele modelito esdrúxulo. Sem arredar pé dos mananciais de álcool do lugar. Entre um gole e outro, o pensamento fazendo maré – Divina indo e vindo, indo e vindo...

Até que bateu-lhe um estado próximo da submersão, as águas tomando nariz, ouvidos e boca. Asfixiante. Eclodiu do sono próprio dos bêbados em cenas de bar. Qual nada!!! Não se deixaria arrastar profundezas adentro, tampouco recuaria. A centelha de lucidez assomando-lhe os poros, e a paixão quase hemorrágica turbinando-lhe as veias, iria radicalizar.

E radicalizou. Dos contornos da janela Divina veria a cena horas depois. Zé Coelho em cuecas e sapato branco sobre o balcão. Braços em eloqüência, e um megafone duas vezes maior que seu rosto. Discursava desconexo. Falava de arrebatamento. Ela se encolhendo em suprema vergonha. Sem entender como, noutra ponta, a atitude lhe enchia de orgulho e admiração. Tocou várias vezes a maçaneta, fazendo menção de ir ao encontro dele, mas decidiu permanecer ali.

Não com a provocação capital que veria mais à frente. Zé Coelho aos holofotes, a freguesia em volta, em delírio, e tudo pronto para o espetáculo. A primeira flecha, num ó monumental do público, farejou-lhe, a centímetros da têmpora. Antes que viesse a segunda, Divina irrompeu por lá. Desarmou o circo. O salto fazendo eco sobre o balcão, marchou em direção ao centro. Fez-se um silêncio típico de duelos. Num golpe de mão ela recolheu a maçã do amor assentada à cabeça dele, alojou-a ao vão dos seios. E pediu licença à platéia. Porque, beirando alegrias de cabaré, teriam uma doce missão a cumprir. Destas de quem baixou por aqui para simplesmente ser feliz. E ponto.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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