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Crônicas
17/12/2008 - 07h06
Disparem um só tiro e virá o silêncio
Eduardo Murta
 

Soa a maldição a bruma que vai se acercando da pequena Divinolândia de Macabau assim que os galos revelam os primeiros sinais de que é dia. A silhueta do casario pouco a pouco envolvida em névoa, até que o badalo do meio-dia venha despejar torrente de sol sertanejo por entre as ruas. É como se a cidade, num fenômeno para além de meteorológico, houvesse sido condenada a viver duas estações num estalar de dedos. Contam que carrega esse fardo há coisa de três séculos. E explicam, a voz sussurrada, como contassem um segredo, que é obra do ódio.

Tudo começara com o bisavô dos tararavós mandando gente ao açoite. Depois, uma junção de tocaias que simplesmente partira o lugar ao meio. Nos últimos cinco meses, percebam, a polícia anotara um linchamento, dois envenenamentos, três casas incendiadas, sete cavalos misteriosamente mortos e, no jornaleco local, um anúncio marcando data e lugar para o duelo. Era assim que dirimiam litígios por lá. A ponto de, temor absoluto, dormir com luz acesa ter virado traço peculiar.

Em meio ao nada, vista ao longe, a cidadezinha emprestando a falsa impressão de simbolizar uma generosa árvore de Natal. Vitalícia. Um eixo central mais iluminado e as terminações laterais rigorosamente simétricas. Na banda Norte, os Gonçalves. Na Sul, os Oliveira. E nula a mais vaga hipótese de que pudessem num futuro se misturar. Nem mesmo depois de mortos, porque até cemitérios distintos fizeram demarcar naquelas terras.

Qualquer voto de neutralidade estava literalmente enterrado. Até cães que bandeavam entre uma zona e outra eram mais tarde vistos em baba verde, definhando à míngua. Ficavam expostos, feito representassem esqueleto do inimigo. Troféu de caça. Era exatamente como queriam se enxergar: um tumor incômodo de que ângulo se olhasse. Natural, portanto, que jamais tivessem empossado um prefeito eleito. Uma junta nomeada pelo poder central, sob inspiração armada, é quem governava.

E uma comissão de topógrafos europeus viera só para estabelecer com rigor científico as fronteiras. Assim, se sabia que a jaqueira ficava no campo dos Gonçalves. O cajá-manga, no dos Oliveira. E ai de quem ousasse tocar nas frutas alheias. Normas locais se inspiravam em fundamento de pura ortodoxia. Cortes a facão em praça pública. E as mãos expostas, reforçando o emblema da severidade.

Aquilo não era o bastante, porém, para afastar o frenesi que se alimentara em torno do duelo. Platéia da redondeza chegando, e as duas funerárias, Norte e Sul, recebendo em coquetel fino. Canapé, champanhe, caldo de cana e pastel. Os brasões dos oponentes logo apontaram em cada uma das extremidades. Estandartes gigantescos. Uma serpente e um leopardo como símbolos. Veio junto o séqüito brandindo tambores, em ritmo que lembrava disputas medievais.

Padres de ambas as paróquias a postos. Estavam lá para acolher a confissão dos sorteados a duelar. Nomeados, creiam, em derrota nos torneios de dominó. E, o tempo sendo misericordioso, cuidar da extrema-unção. A escolha aleatória pusera no olho do furacão, pelos Oliveira, Juliano, 12 anos, canela fina. Menino recatado. Sequer manuseara espingardas de chumbinho. Pelos Gonçalves, viera Francisca. Cinqüentona. Míope. Ainda mais trêmula que o adversário.

Ansiedade e medo os unia. Os revólveres se revelando estranhos à cintura e ao toque dos dedos gotejando suor. Na contagem em 3, deram de atirar a esmo. A bala alcançou um. Um disparo atingiu outro. E a multidão rendeu-se a um silêncio de sublimação. Ambos os párocos tombados. O sangue, num vermelho escandalosamente sombrio, foi se assomando às batinas brancas. Coronéis, num gesto de mão, suspenderam a disputa. Haviam entendido aquilo como um sinal. Não se sabe ao certo se de Deus ou do demônio.

Miraram o céu. Talvez fosse tarde. Porque em seguida veio uma sucessão de raios, o temporal. Divinolândia, em minutos, coberta por um imenso espelho d´água. Todos mortos. Mas aquela gente, afinal, reunida num lastro sem fronteiras. Se misturando, enfim, sem uma só gota de discórdia. Louvado fosse.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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