Era para ser puramente virtude. E converteu-se também em irreparável veneno na história daquela mulher. Ela mesma decretara, assim ao natural: um único passo que desse, seria para servir ao arrebatamento. À paixão. Sil nascera assim e não se condenaria por isso. Mais: prometera alimentar tal sentimento com vigor de debutante dia após dia. Notem como se joga e se retira de uma relação. Com naturalidade ímpar. Não custou a que materializasse, na geografia da arte, aquela forma de ver e lidar com o mundo. Em que passionalidade ditava simplesmente tudo. Fosse com os homens que elegia (jamais se permitia ser eleita) para imolar-se depois num querer tsunâmico, fosse em suas telas, pintadas em furor explosivo. Era disso que extraía toda sua matriz inspiradora. Cores, texturas, formas. Desapaixonada, caía num ocaso criativo, beirava estagnação. Emagrecia. Se isolava. Para meses à frente devolver-se à rotina produtiva à chegada de um novo bem. Aquilo lhe rendia prêmios, exposições, reconhecimento da crítica. E madrugadas soberanas de amor... Até que resvalasse de novo no destempero da química. Corpo e alma pouco respondendo aos estímulos. O contato de pele, de olhar, não se desdobrando em urgências do coração. Era tempo para refazer malas. Importava nada se enxergavam ali comportamento de fêmea do louva-a-deus, habituada a destroçar o macho no acasalamento. O que fazia, o fazia por naturalidade. E instantâneo se fechava. Ainda que não se credenciasse a angústias ou ruminasse perdas. Logo pela manhã se punha em macacão delineando-lhe o corpo – cintura em pêra, coxas roliças que enfeitiçavam os homens – e rumava ao ateliê. Prendia os cabelos, o que a tornava mais bela, acendia o único cigarro do dia a que se permitia, e, diante da tela em branco, suspirava por uma mísera gotícula de inspiração. Perdera a conta de quantos pincéis partira na junção dos joelhos, por irritada. Do sem-número de tubos de tinta despejados à cabeça, por desespero artístico. Da coleção de esboços feitos depois em pedaços. Tocados ao fogo. Vieram meses sem que conseguisse pintar um traço sequer. Daí se curvou à ciência da razão pura. E deu a se perguntar onde exatamente errara. Não achou respostas. A caminho dos 30 anos, foi riscando à parede o calendário de improdutividade – na arte e no jogo sincero de seduções. Lá se iam 417 dias. Isso explicava ter passado ao consumo diário de três maços de tabaco, ao de uma garrafa e meia de vinho. Encurralada, foi à caça. Pôs modelito sensual. Negociou conquistas fáceis, desemocionadas, ela no comando, como de costume. Anotou na agenda de impressões: num trimestre, 42 transas. Seis candidatos em potencial. Nenhum passaria no crivo. Já começava a perder cabelos. Devorar as unhas. Parou de menstruar. Parou de menstruar!?!?!?!? Os arrepios lhe varreram até a alma. O temor, o tremor, tudo atropelando sentidos e sentimentos. Criou coragem. Fez o teste. Positivo. Como chorou. Naquela noite, já à nona taça, dormiu conversando com as constelações. Dia claro, pôs-se pé. Tomou banho gelado. Lambuzou-se em tintas. Quis pintar arco-íris. Vendavais. Talvez fosse hora de mudar. A tela, emblemático encontro de nuvens e vulcão, ganhou o mundo. Ah... seguro de que seria um menino. E lhe daria o nome de Paixão. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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