Papai Noel jamais recebera carta tão estranha. Abrira o envelope com a naturalidade de quem se habituara a ler milhões de mensagens por dia. Dons divinos. Mas aquela carregava um quê de carga dramática, a ponto de levá-lo a fazer entrelaces em espiral junto à barba. Era seu sintoma mais grave de preocupação. Havia séculos, não lhe chegava algo assim. Daí ter assentado os papéis na mesa lateral e seguir trabalhando, à espera vã de que sumissem como num passe de mágica. Os ponteiros girando, e a papelada ali, feito dolorido sinal de lembrança. Foi, remexeu, releu, reordenou. Era, estava seguro, letra de adulto. Exalava atmosfera de angústia e inconformismo. O desejo mesclava súplica e tom imperativo: “Quero de volta minha alma de menino”. O bom velhinho vasculhou os registros na biblioteca em que os vãos davam no infinito. A ver se encontrava paralelo em qualquer período da História. Nada naqueles moldes. Embrulho para saudade e circunferência para adormecer luas haviam sido os itens mais próximos, em intangibilidade. Houvera sido capaz de atender a ambos, e não se admitia falhar agora. Mais que reputação, para além dela o que estava em jogo era contentamento. Não poderia, logo ele, se converter em sinônimo de frustração. E o dezembro se aproximando, as olheiras saltavam-lhe à face. Aos sinais de que não vislumbrara resposta, tentaria último recurso, a conferência em bola de cristal – cenário de neve como estampa – reunindo conselheiros da velha guarda, em rica e fina sensibilidade. A conclusão trágica era a de que, à sua forma, até as almas envelheciam. O que tornava mais distante se cumprir aquele desafio. Se fundamentos clássicos haviam dado em becos sem saída, por que não se concentravam na linha do intangível? Pó de pir-lim-pim-pim? Não, não, infantil em demasia... Álbuns completos com super-heróis, astros do futebol? Quem sabe, mas morava ali algum risco de alguma rusga infanto-juvenil... O dia 24 batendo à porta, e Papai Noel um poço de incertezas. Embarcou mesmo sem convicção rumo ao endereço descrito. Casinha no Bairro Renascença, arquitetura simples. Jardim peculiar. Já sabia o que fazer. Madrugada, a rua deserta, entraria pelos fundos. Portas de cozinha em áreas pobres eram sempre destrancadas. Da sala em penumbra avistou o pretendente que lhe escrevera. Beirava os 70. Calvo. Respiração leve. Entrou no quarto e deu vida à transformação capaz de despertar quem quer que fosse. Impregnou o lugar em cheiro de mato. Era odor de saudade. Num estalar de dedos, lançou ao ar uma constelação de vaga-lumes. Exatamente como a imagem que povoara por anos o coração daquele homem. Ele se sentou à cama, sozinho com o cenário mágico. As luzes flutuando na escuridão. Se viu por inteiro ali. Recebeu como presente sagrado. Se contentou feito um menino. À alma iluminada, adormeceu feito um anjo. Sem hora de acordar. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, auto de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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