Não obstante sua alentada onipresença e clarividência, é notório que a imprensa nem sempre trata os assuntos como deveria, ao priorizar certas notícias em detrimento de outras, até de maior relevância, mas sem o mesmo apelo e conveniência. O que poderia ser compensado pela variedade de opções que hoje em dia se tem à mão, não fosse a dificuldade de se digerir o pantagruélico banquete midiático sem o devido sal de frutas da confiabilidade. Ainda mais no aziago campo político, em que o desvirtuamento e a distorção de fatos e mesmo de verdades históricas servem de pano de fundo para o radicalismo e a polarização que a chegada de Lula ao poder acabou escancarando. Com o aval do próprio, diga-se de passagem, no afã de neutralizar o alarde feito pela mídia com o mensalão. História que todos conhecem e que se constituiu numa espécie de marco do virtual, rompimento da chamada grande imprensa com o governo petista, e cujas seqüelas alguns ainda fazem questão de alimentar. Sim, pois se o canibalismo político faz parte do jogo hegemônico e respectivas esferas, como o próprio primado da razão, que ambas as partes reivindicam para si, não é menos verdade que de lá para cá o lema "ganhar no grito" vem pautando o debate político, a partir da defesa intransigente de opiniões e posições que preferem ignorar as virtudes da eqüidistância, ou o que a sabedoria popular chama de nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Composições para a governabilidade Governistas de um lado, grande imprensa de outro – eis como se podem resumir as discussões que ano após ano dominam nosso cenário político, pelo visto, sem grande impacto junto à sociedade, já que o prestígio de Lula continua imune a todo tipo de turbulência e com um gás a mais revelado nas últimas pesquisas: a aprovação do governo também pelas classes mais altas. Na verdade, não é difícil perceber quem é quem nesse duelo inócuo em que as retaliações só têm contribuído para acentuar o desgaste e o comprometimento daquilo que o jornalismo tem de mais importante: a credibilidade. Algo que não poderia mesmo ficar incólume face ao caráter recalcitrante de certas críticas e objeções sistemáticas e cuja recorrência a rigor depõe contra os dois lados, na medida em que moldadas por paradigmas de moralidade e ética que vivem a cobrar dos outros, mas não praticam. Ou os que são incapazes de reconhecer o que Lula faz de bom são melhores dos que bajulam o governo, de olho em favores e verbas publicitárias? Salta à vista que ambas as correntes são o vórtice de uma modalidade de jornalismo desonesto e pernicioso, que prefere ignorar que em política, como na própria vida, não se consegue agradar a todo mundo. E que sem fazer certas concessões – e aqui o ponto mais delicado e difícil de advogar –, se não exatamente como o exemplo escatológico mencionado tempos atrás pelo ator Paulo Betti, mas na forma de composições políticas que permitam a governabilidade, sem o que ninguém sobrevive, Fernando Collor que o diga. Métier este, por sinal, no qual Fernando Henrique Cardoso se esmerou para viabilizar o sem-número de reformas que, como se sabe, alavancaram o êxito do atual governo em setores cruciais como a economia e programas sociais. Um ano espinhoso No mais, não dá para simplesmente aceitar que os anseios por uma imprensa mais centrada e isenta não passem de uma grande utopia, uma ingenuidade como acreditar em papai noel. Ou vá lá, no mínimo menos engajada e hostil a um governo que, quer queiram ou não, tem feito o dever de casa satisfatoriamente. Como atestam os altos índices de aprovação a Lula, que o povo melhor do que ninguém sabe onde o calo aperta. Dar a César o que é de César, eis o que se espera de uma imprensa responsável. O que pode ser feito sem subestimar os problemas que continuam a manchar a reputação do país e cuja postergação justifica as cobranças mais veementes, pois não dá para engolir que a violência urbana, por exemplo, continue fazendo do Brasil um país que mata por ano mais do que todas as guerras do planeta. Uma vergonha que nem os rompantes retóricos de Lula conseguem abafar. Como também é vergonhoso que o país siga sem equacionar os gargalos crônicos em áreas igualmente vitais, como da saúde, educação e infra-estrutura. Assim como estas, muitas outras situações graves podem ser debitadas ao perdularismo do governo, como tem sido feito pela mídia sensata, contrastando com os obcecados em escarafunchar as lixeiras do governo, em busca dos dejetos que o exercício do poder costuma produzir. Tanto remexem que sempre encontram algo com que se ocupar, mas na maioria das vezes a coisa não fede tanto quanto querem fazer parecer. Achar o diapasão certo é, pois, o grande desafio que se apresenta à imprensa, no limiar de um ano que promete ser particularmente espinhoso. Os bufões da mídia Com a recessão mundial batendo às portas, já ficou claro que a simples intervenção do governo não será suficiente para manter a economia blindada, pois há vetores que fogem ao controle. Como a disposição do empresariado e de banqueiros em queimar parte da gordura acumulada nos últimos anos, e de a imprensa não querer que o circo pegue fogo pelo simples prazer de ver Lula queimado. Mesmo porque todos devem estar cientes de que a gravidade da situação requer um esforço geral para que o país se safe sem comprometer a estabilidade tão arduamente conquistada e da qual todos têm se beneficiado. Ainda mais que já não consola aquela tola crendice de que somos um país abençoado por Deus, que goza das boas graças da mãe natureza, como se vê pelo sofrimento que as chuvas inclementes têm levado a várias regiões. Transtornos e calamidades para as quais a falta de planejamento urbano e a negligência das autoridades continuam colaborando, conforme a imprensa tem apontado. Mas é evidente também que as cobranças não devem recair tão somente sobre os governantes, já que boa parte da culpa pela repetição dos mesmos dramas cabe à própria população. Embora sempre se possa alegar, como faz demagogicamente o próprio Lula, que os pobres, desvalidos e até delinqüentes não passam de vítimas da sociedade, um subproduto da lei das selvas que rege o capitalismo, a verdade é que no fundo tudo é uma questão de livre-arbítrio, segundo o qual cada um é responsável por seus atos. Portanto, ao mesmo tempo em que é um direito legítimo e sagrado do cidadão botar a boca no trombone, clamar por providências, quem ergue seus barracos em áreas de risco, entope os bueiros de lixo e acha que a culpa é do governo que trate de enfiar a viola no saco e fazer a sua parte, pois de gente que só sabe reclamar já bastam os bufões da mídia.
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