Ando com o espírito do Coélet: nada há de novo debaixo do sol, quanto mais conhecimento, mais sofrimento. E o ano de 2008 trouxe-me luminoso despertar na análise política. Meu mergulho na literatura de Ortega y Gasset, Voegelin, Strauss, Aron e gigantes assemelhados me trouxe mais conhecimento e muito mais sofrimento. É inútil o saber na ciência política? Visto do ponto de vista dos operadores do poder, sim. Os novos operadores do poder – os novos príncipes – não querem saber da essência do seu ofício, mas apenas de como chegar lá. Tem sido assim desde o Renascimento. Visto do ponto de vista da sabedoria, não. O saber será sempre superior à ignorância. A discussão inaugurada por Platão é se a moral é algo que tem origem nos costumes, construído socialmente, como queriam os sofistas, ou se é algo descoberto de uma matriz metafísica. Ele mesmo e seus sucessores inauguram a tradição de que a base real da moral e da política continha um elemento transcendente, cabendo ao filósofo e ao governante seguir o curso “segundo a natureza”. Os limites do bem e do mal estavam em Deus e não na alma do homem. Ao governante caberia legitimar-se para administrar os apetites irracionais dos governados, das multidões. É a imagem de Moisés descendo do Sinai com as Tábuas da Lei e mandando destruir os bezerros de ouro. O bom governante é aquele que legitimamente diz “não” às irracionalidades coletivas e faz prevalecer a Justiça, a virtude do príncipe. Faz valer a lei natural. A dialética entre governante e governados pressupunha a aceitação recíproca desses pólos irreconciliáveis: o governante sábio cumpria o seu papel de líder, escolhendo os destinos coletivos mirando o fundamento metafísico da existência. Essa foi a grande vitória política do platonismo (que formou a tradição política cristã) contra os sofistas, entre os quais a tradição epicuréia e a arrogante e ególatra proposta estóica. Definitivamente o homem não é a media de todas as coisas e a razão é muito limitada para fundar a ordem justa sem o amparo da metafísica. Com Maquiavel essa ilusão sofística retorna para não mais sair. Prevalecerá agora a lógica do aventureiro que só enxerga o feitiço do poder e não tem nenhum compromisso com a ordem da alma. Mira-se nos fins, que passam a justificar todos os meios. O florentino é o pai espiritual de todos os revolucionários, dos jacobinos franceses aos puritanos ingleses e aos comunistas de todos os quadrantes. Maquiavel foi secundado pela dupla Hobbes e Locke, aparentes opostos que comungam da fé na razão e introduzem o conceito moderno de direitos humanos no seu fracionamento alucinado. Inventaram-se direitos para todos os usos. Ainda ontem li nos jornais que políticos italianos protestavam contra o que consideram a violação pelo governo daquele país dos supostos direitos dos imigrantes ainda não aportados. Que direito (juridicamente falando) tem um imigrante ilegal indesejado? Nenhum, pois não integra a ordem política do país que pretende invadir. E ainda que supostamente dispusesse de algum direito, este colidiria frontalmente com os direitos dos cidadãos fundadores e residentes no país a que se destina. Qual a hierarquia desses direitos? Obviamente que aqueles que fundaram e mantêm uma ordem têm não apenas o direito, mas o poder de impô-lo. A alucinação da modernidade tem um dos momentos basilares quando modifica o conceito de direito natural, originalmente fundado na metafísica, e inventa a mentira dos direitos humanos, desconectados que estão da antropologia filosófica. O homem é uma unidade que não pode ser fracionada. A alucinação é de tal ordem que declarações pomposas foram sendo feitas sucessivamente desde da Revolução Francesa e da norte-americana, culminando com a da ONU e a da Comunidade Européia. A alucinação de Locke tomou a alma moderna, de tal sorte que os homens supostamente cultos e sábios se prestam a escrever e a querer cumprir esse conjunto de tolices contraditórias. Esses filósofos e juristas modernos quedam como um Dom Quixote diante das prostitutas, chamando-as de donzelas. São dignos de risos. Estão na fronteira entre a estupidez inteligente e a estupidez criminosa de que nos falava Voegelin em sua obra. Em perspectiva histórica a obra de Rousseau não passa de um eco desses falsos filósofos mais antigos. Ele fez uma grande síntese, deu a receita completa para os revolucionários, condensou nos seus escritos o mau-caratismo que estava disseminado nos seus predecessores. Rousseau impregnou o kantismo e a sua alucinação em busca de uma paz perpétua e de um governo mundial; deu também o lema para o marxismo e o vocabulário para cunhar as palavras de ordem das modernas democracias de massa. Rousseau é o profeta das massas no poder, o ideólogo da igualdade. Locke era cínico, sua liberdade e igualdade eram meros enfeites para legitimar a desigualdade burguesa originária da qual tinha plena consciência. Rousseau não, levou a sério sua idéia de vontade geral e de igualdade, idéias que são as fundações das grandes tragédias políticas desde então. Sou cético. Não creio que se possa mais restabelecer a visão monista originária de Platão como ethos da vida política. A maldição é ainda maior porque esse fracionamento da consciência – ou mergulho na inconsciência, dependendo de como se olhar a história política – coincide com a máxima habilidade técnica dos homens. A capacidade de destruir está no apogeu. Gente moralmente incapaz tem a voz de comando para pôr em movimento grandes máquinas de destruição. Não hesitarão em fazê-lo, se a ocasião aparecer. Sou pessimista. A arrogância da humanidade será o combustível do seu próprio holocausto. Foi assim no passado, será assim no presente. Se a crise econômica tomar proporções inadministráveis a alucinação populista dos governantes deixará o estado de latência e mesmo que homens isolados tentem resistir à irracionalidade das massas desembestadas serão prontamente substituídos por representantes mais “realistas”. Vimos agora a eleição de Obama, que explorou os instintos mais primários das massas, valendo-se da crise econômica. O que esperar dele? O pior, sem dúvida. Mas como não tomou posse ainda dou-lhe o benefício da dúvida. Espero que em sua alma habite um estadista. O dilema dos estadistas foi sempre este: ou praticam o bem, a Justiça, e contrariam as massas, ou atendem aos apelos da multidão e praticam a mais profunda injustiça, que em última análise leva à guerra e à destruição em massa. Os que seguem o segundo caminho prometem, como Obama o fez, o que não podem cumprir: dar segurança, bem-estar social, eliminação da lei da escassez, prosperidade perene. É o espírito de Beemoth dominando o Leviatã. Sob o céu de Saturno Plutão espalha o seu beijo de morte. Nota do Editor: José Nivaldo Cordeiro (www.nivaldocordeiro.net) é executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.
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