A casa 78, entre os jambos centenários da Rua Quaresma, guarda para além da mera plaquinha de consultório, da fachada amarela. E bem mais que seus jardins em delicadas azaléias. Vejam Ana Clara adentrando. Psicanalista dedicada a terapias de casais, vivenciara desfechos emblemáticos vida afora. Um mais estaria por vir. São marido e mulher, beirando três décadas de aliança, na sala de espera. Em crise que se instalara quase imperceptível. No excesso dele em cigarros. No descontrole dela em bebida. Nos quilos a mais em ambos. E, substancial, na desconstrução diária do amor. Haviam se conhecido num dezembro em que as chuvas alimentavam os encontros involuntários, por vezes sugestivos, das gentes nos pontos de ônibus. Cruzaram os olhares – o dela, verde-esmeralda; o dele, castanho-amêndoa – naquele movimento de curral. Tangidos, se perderam e voltaram a se enxergar, molhados, uma coleção de ombros os separando. Ele foi se desvencilhando em licenças, até chegar a ela. Sacou do bolso do casaco um lenço, ainda sem trocar palavra. O estendeu. Perfume discreto. Deixou que viajasse ao rosto... Rosa carregaria por todo o sempre aquela imagem. A ela se apegava nos soluços de saudade, Fabrício em viagem, ou nos instantes em que ensaiavam fraquejar os sentimentos. Guardaria a peça, como acreditasse em talismãs e em sua capacidade de remediar dissabores, trazer bons ventos. Não era casual que o levasse às mãos quando cruzou pela primeira vez a porta daquela sala. Lá, rendeu-se à empatia e à leveza de Ana Clara. Ouvidos de seda, zelo de relojoeiro em anotar a expressão correta. Realinhava os óculos – as órbitas num azul-sueco – e respirava longo nos pontos que julgava reveladores. Se afeiçoara à forma poética com que Rosa descrevia a relação. Valeu por igual com Fabrício. Um contentamento a visitando, não sabia responder por quê, em recebê-los ali. A dupla talvez se houvesse convertido no mais nobre desafio em 24 anos de carreira. A doutora firmando a convicção de que progredira em juntar fio a fio, ponto a ponto, depois de mais de 30 sessões. Notara, e eles mesmos confirmavam, as emoções experimentando tom mais maduro. Por ocasiões, de maneira tão aguda, que soava-lhe à lâmina da pele a pulsação e atmosfera que emprestavam àquele colóquio. No fundo, permitira tanto se romper a liturgia do ofício, que se prendia agora a justificado temor. O de que tivessem, todos eles, transposto a linha imaginária da relação analista-paciente-analista. Pisado em terreno alagadiço. Se deu que, na medida que Fabrício redescobria o amor em Rosa, o vislumbrava também em Ana. E Rosa, no reacender de significados mágicos pelo marido, os enxergava igualmente na intermediadora daquilo tudo. Sem que nada se verbalizasse, Ana Clara interpretou os cenários com perfeição. E balançou! Um desejo crescente varrendo-lhe por inteiro. Quis rasgar diploma, pulverizar julgamentos. Rasgou. Pulverizou. Naquela tarde de consultório, fechou-se o triângulo. Era um querer de arrebatamento derrubando uma a uma as cancelas da razão. Num jogo de bocas, beijos e gozo sem dono. Transformando reordenamento terapêutico em sincera e desimpedida sessão de amor. Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
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