Começo o ano meio à toa, buscando uma razão para escrever... Ou a desrazão para ter o delírio da prosa. Movo-me, move-me o perfil do amigo que me convidou para a passagem do ano a seu lado. Conheci-o no distante ano de 68, distante no calendário inda que vivo em nossa memória. Numa tarde de domingo, na margem do rio Capibaribe, juntamo-nos para assistir à disputa entre barcos a remo. Tínhamos lá o nosso ódio aos burgueses da época. Por sugestão de Zé Amaro, decidimos torcer por uma equipe que não conhecíamos, o Barroso, de atletas pobres. Já tínhamos a confiança das ruas, visto que nas ruas queríamos ver o povo exigindo o fim da ditadura. Mas pusemo-nos a gritar da rua do Sol, do outro lado da rua da Aurora, a rua do Dops, dos porões apinhados de presos políticos. Gritávamos Barroso! Feito loucos. Queríamos gritar abaixo a ditadura, não podíamos porque estávamos em minoria. Os bem-nutridos da época torciam pelo Náutico, pelo Sport, pelo Internacional. Gritamos pelo Barroso, convencidos de que tínhamos feito a opção pelos mais pobres. Foi a última vez que Fernando Santa Cruz torceu pelo Barroso. Os esbirros de então tiraram-lhe as chances, as chances e o corpo ainda hoje não devolvido. Os atletas nos acenaram, só para nós. Em nossas crenças, convencemo-nos de que também eles ecoavam o abaixo a ditadura de nossas gargantas. Três anos depois, corridos cada um para um lado depois da sanha policial, reencontrei Zé Amaro. Não num domingo generoso como o da regata, numa segunda-feira carregada de ameaças, centro de Fortaleza. Clandestinos, não pudemos nos cumprimentar para não romper a regra de viver compartimentados, para não chamar a atenção da polícia. Depois vim a saber que ele, hospedado na casa de um casal de amigos, fora objeto da paixão da mulher do casal. Não uma paixão insana, inda que meio cega. Ela queria a todo custo entregar-se a ele, julgando-o semelhante, igual ao namorado que tivera antes de se casar. Zé Amaro, no usufruto do abrigo que o amigo lhe dera, resistiu. Ela ameaçou-o com a jura de que se suicidaria, atirando-se no poço do quintal. Ele arrumou a mala, saiu de casa. Ela chorou na frente do marido, a pretexto de que a ausência de Zé Amaro traria prejuízos ao bem-estar dos filhos. Em dois meses os filhos se afeiçoaram a Zé Amaro. Na segunda-feira em que o reencontrei, lembrei-me de nossos gritos. Não sei se ele se lembrou. Mas certamente os tinha sufocados. Até então, tínhamos Fernando Santa Cruz como vivo, mas encafuado como nós. Vestia, Zé Amaro, a camisa que me emprestara numa viagem a Goiana. Tínhamos bebido na véspera. De volta, no ônibus, vomitei a contragosto, sujando minha camisa. Devia ter sentido nojo, ele apenas sorriu. Fez-me sentir pequeno. Agora, depois do uísque que me ofereceu, referi-me ao episódio. Ele não se lembrou, não se lembra. Deus do céu! Fora generoso e não se lembra mais. Senti-me pequeno outra vez. Zé Amaro voltara para Recife fazendo um juízo ingênuo da relação de forças entre nós e os esbirros; talvez por sua generosidade, mas certamente pelo amor a Edwirgem, sua mulher. Foi preso, sofreu o diabo nas mãos dos carrascos. O corpo sofreu; a alma manteve-se generosa, digna. Fora avisado de que seria preso; não pelos camaradas ainda intocados. Dissera-lhe uma velha negra de olhos fundos, useira de macumbas; dissera-o serena, mirando-o, abalando-o na crença dos incréus. Com o passar dos anos, aprendeu a fazer exercícios físicos; num deles, abundante, sofreu um choque nos olhos. O tempo tirou-lhe a visão. Nem por isso deixou de escrever para O Bocão, sua cria em Paulista. Não perdeu o sorriso franco, a calma nas palavras. Diz apenas que sente não poder sair para visitar os amigos. Nós o visitamos para entretê-lo e para nos encher da fartura de nobreza que vem de seus olhos cegos. Há fartura de comida na mesa que ocupamos. Na calçada, olhando o povo – ele não vê, mas absorve as energias – na avenida, Edwirgem descreve as iguarias nas duas mesas. Ele come apenas uma tira do peru assado, pausado para não estragar o verbo refletido. Pede-me para botar gelo no seu copo, gelo e uísque. Boto contando as pedras; depois da quarta, ele levanta a mão para conter a minha. Há pedras de gelo de água de coco; ele prefere as comuns. Outra vez sinto-me pequeno. Bebe em pequenos goles; entre um e outro, desmonta a bengala, monta-a. Balbucia qualquer coisa, os filhos acorrem, identificando as sílabas. À meia-noite, fogos; descrevo-os para ele. É um menino nos seus mais de sessenta anos; sorri como se estivesse vendo-os. Fora homenageado com o título de Cidadão Paulistense. A Câmara curvou-se ante o perfil de honestidade de Zé Amaro. Para reconhecer o quanto a Prefeitura fora injusta, anos antes, quando o demitira da função de administrador do matadouro municipal; fora demitido por ter se recusado a demitir funcionários menores. Ele vestiu-se de paletó, tirou-o na hora de fazer o discurso, disse que todo político que usa paletó é para melhor enganar o povo. Aplausos, fotos. Meia-noite e meia, sugiro que Edwirgem telefone para Urariano Mota. Cumprimentamo-nos, fazemos votos de amizade. Dissera-me, Urariano, que não estaria conosco porque teria que receber a sua “mundiça”. Zé Amaro censurou-o, censurou-o sem azedume, por certo para não perder a generosidade. O dono do bar vem nos cumprimentar; é um negro alto, de bigodes fartos. Como não é besta, vestira-se de branco também. Posa para as fotos. Como não é besta, ficou ao lado de Zé Amaro. Àquela altura, julgo que beber o uísque é um sorvo de cidadania legitimado pela dignidade de Zé Amaro; com a cumplicidade de todos os santos. Ouvimos o mar salpicando suas águas para fora. O vento sopra sem mesquinhez. Há algumas árvores. É bom crer que há gnomos ali. Iemanjá é uma iabá manjada, ninguém a menciona. Às três horas ainda havia muita comida. Edwirgem junta-a na mesma bagagem que a trouxera. Voltamos de carro. Peço para descer em frente à igreja, perto de minha casa. Por certo não estava pensando em rezas, mas queria poupá-los de tantos favores. Consegui abrir o terraço. Não fui para o quarto, deitei-me na rede. Acordei com jeito de gnomo para escrever esta crônica anacrônica. Nota do Editor: Marco Albertim é escritor e jornalista.
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