02/09/2025  09h49
· Guia 2025     · O Guaruçá     · Cartões-postais     · Webmail     · Ubatuba            · · ·
O Guaruçá - Informação e Cultura
O GUARUÇÁ Índice d'O Guaruçá Colunistas SEÇÕES SERVIÇOS Biorritmo Busca n'O Guaruçá Expediente Home d'O Guaruçá
Acesso ao Sistema
Login
Senha

« Cadastro Gratuito »
SEÇÃO
Crônicas
18/01/2009 - 12h06
Liêdo Maranhão, sexo, povo e felicidade
Urariano Mota
 

Há quem interprete as pesquisas de Liêdo Maranhão, sobre a cultura popular, como uma obsessão no limite do pornográfico. No entanto, Liêdo é um homem muito puro. O sexo para ele é manifestação de alegria da infância brasileira. Em lugar de proibido em conversas de boa educação, ele deveria ser divulgado para menores de todas as idades, de todas as escolas do Brasil. O registro que ele faz da fala do povo, a fala crua, sem literatice, mas que guarda história, o flagrante que ele dá no povo quando fala de sexo, que dá nomes rejeitados pela formação hipócrita como chulos, com uma verdade que nos faz rir, lembra o popular como uma criança crescida.

Liêdo é desse povo cheio das maiores grandezas e de baixezas também. Isso quer dizer, Liêdo é nosso. Nosso como as frutas nordestinas, como as bonecas de pano, que muitos chamam de bruxas, as mais lindas e doces bruxas. Ele é nosso como os brinquedos de artesãos pobres, os piões, os badoques, os carrinhos de flandre e de madeira. Ele é como os repentes criativos dos homens que fazem a nossa família, grande, imensa, do nosso misturado sangue. Nosso como o Mercado de São José, por onde ele circula até hoje com mais intimidade do que quando esteve na barriga da sua mãe. Sei que aos 83 anos ele anda muito emotivo, chora com pouco e pouca coisa, mas não posso deixar de dizer, enfim: o seu trabalho, Liêdo, não é nem foi em vão. Os seus registros são uma felicidade, uma beleza, um bem permanente.

Nascido em 1925, no Recife, no bairro de São José, com uma vida tão fecunda, ele não se irrita, não se magoa, quando a ignorância da gente pergunta quem é Liêdo. Dirá, como disse: “Sou dentista e esquizofrênico cíclico, como um amigo psiquiatra já me disse. Sou poliglota: falo espanhol, francês, e falo gago também”. Ao que ato contínuo, emenda com uma das suas histórias, porque Liêdo não gosta de conceitos, gosta de gente: “Lá em Beberibe tinha um funcionário chamado João Vieira, no Posto de Saúde. Ele tomava uma cana arretada. Um dia João estava bêbado, e não pôde entrar, porque o diretor do posto não deixou. Aí eu cheguei pra ele e perguntei, ‘que é que há, João?’ E ele respondeu: ‘Esse homem aí não quer deixar eu entrar não. Mas ele pra mim não passa de um poliglota! O senhor sabe o que é poliglota, doutor? Poliglota é o sujeito que é metido a coisa, não tem nada e vive a troco de peido’“.

Então parte para explicar, pela enésima vez, com imensa boa vontade: “Minhas pesquisas são sobre os camelôs, os come-vidro, engole-cobra, os cantadores, mas sobretudo os camelôs de remédio, que são muito inteligentes. Inventam até nomes para as drogas que vendem. Tem uma que é a ‘Resina da Gerimataia’. Outro: ‘Banha do peixe-elétrico’.” E conta mais uma de suas histórias: “Eu vou te contar uma de um camelô, pra você ver que beleza. Tinha um que vendia catuaba, que era pra tesão, aquela coisa afrodisíaca. Ali é um ambiente de mulher, de prostituta... então ele com a garrafa na mão, uma ‘garrafada’, aquele pessoal todo ao redor, a gente chamava ele de Fazendeiro, porque usava um chapelão, era muito gordo. Pois Fazendeiro pegava a garrafa e dizia: ‘Isso aqui é pra esses tipos de homem que chega em casa de noite, se deita com a mulher, e fica fundo com fundo, feito casa de vila’. E continuava: ‘Agora você compra este remédio e dê à nega véia, que a nega véia fica quente que só fundo de chaleira. Porque o homem que compra o remédio e não dá à mulher, duas coisas acontecem: ou ele tá liso, ou ele não gosta da mulher’. Outro camelô dizia assim: ‘O homem mais a mulher é como uma balança: quando um sobe, o outro sobe, quando um desce, o outro desce, quando um chega, o outro chega, aí é tutu com tutu e bumbum com bumbum’. Eu tenho tudo isso anotado. Eu tenho um livro com tudo isso, ‘Marketing dos camelôs de remédio’.”

Esse registro das falas do povo, mais vivo que um flagrante pelo buraco de uma fechadura, tem método. “Com os camelôs era o seguinte: eu passei 10 anos ali, diariamente. Então eu já sabia o ‘disco’ de cada um. Aquilo tudo ali é muito bonito, muito criativo, muito poético...” E emenda com uma das suas vivências: “Lá na praça tinha uma prostituta, Maria. Ela tinha vários apelidos: era Maria Branquinha, Maria Doida, Maria Chega Cedo, Maria Ligeirinho, porque ela quando estava com um homem, batia nas costas dele, dizendo ‘vá, meu filho, goze logo, vá’. Eu dava a maior atenção a ela. Então ela dizia a mim: ‘olhe, doutor Liêdo, eu gosto do senhor, porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra safado’. Isso pra dizer que eu gostava do povo da praça do mercado”.

Entre os seus tipos inesquecíveis, Liêdo lembra logo de Fazendeiro, camelô, amigo e compadre. “Tinha uma escultura minha, de ferro, que a Prefeitura do Recife comprou, que era uma homenagem ao Papa, à passagem do Papa no Recife. E Fazendeiro trabalhava defronte à escultura. Na época, saiu no jornal que a Prefeitura tinha comprado a escultura por vinte mil reais. E ele vendia umas pomadinhas, a 1 real cada. Um dia, quando ele tinha terminado as vendas dele, ficou olhando a escultura. E me disse: ‘Mas doutor, o senhor botou no cu daquele Papa direitinho...’. Ele pensava que o Papa tinha comprado, e comparava com a venda de 1 real das pomadas”.

Outra lembrança é da prostituta Isabel, que vivia na frente do antigo cinema Glória, “batendo calçada”, como o povo diz. Um dia, ela chegou pra Liêdo e disse: “Meu filhinho, eu sonhei com você hoje”. E Liêdo: “jogue veado”. E ela: “Deu veado ontem, mas eu não vou jogar não, porque você não tem nada de veado. Quisera eu ter um veadinho desse”. Quando Isabel o viu pela primeira vez, lhe disse: “Meu filhinho, você tem um cigarro?”. Eu respondi: “Meu amor, eu não fumo”. E ela: “Não fuma, mas mete...”. E Liêdo: “Meto, mas estou esperando um amigo”. Era Fernando Spencer, o cineasta. “Não sei o que ela pensou depois, quando me viu junto dele...”.

Outro personagem vivo, de suas pesquisas, foi Pereira, camelô de remédio. Pereira teve um tempo doente, com asma. Um dia procurou Liêdo pra lhe dizer “Doutor, essa doença tira as forças da gente. Em casa, com a nega véia, eu entro com a ferramenta, e ela entra com a mão-de-obra”. Pereira vendia umas pomadas, à base de salicilato de metila, a substância do vick vaporub, e dizia que a pomada era pra “dores incausadas”. Certa vez, Pereira na função de maravilhoso médico, Liêdo deu uma força a ele. No meio da multidão, pediu ao camelô: “Rapaz, eu queria uma latinha daquela, porque eu estava com uma dor nesse braço, e fiquei bonzinho. Agora apareceu a dor no outro braço. Quero mais uma latinha”. Comprou, e ao se afastar, ouviu o anúncio no alto-falante: “Esse aí é Doutor Liêdo Maranhão, diretor-presidente da Empetur”, enquanto a pequena multidão caía em cima pra comprar. No outro dia, quando foi à praça, ouviu de Pereira a proposta: “Doutor, eu queria viajar com o senhor. Porque o senhor é o maior mala do Recife”.

À sua maneira, Pereira estava certo: Liêdo é mesmo mala, de amor pelo povo do Recife.

*

Três falas de personagens de Liêdo Maranhão:

1) “De Conceição, servente: ‘Eu só enjeito pisa”. Aí eu disse a ela: – ‘Eu entendi pica’. E ela: – ‘Pica eu não enjeito não, doutor’“.

2) De Zé, da Lanchonete Chá Mate Brasília: “Silva é um menino de ouro! Se derreter, dá o anel”.

3) Do pastor José Luiz, na Praça Joaquim Nabuco, pregando o evangelho: “Paulo disse: ‘Bom seria que o homem não tocasse em mulher’. E agora estão dizendo que Paulo era bicha!”...


Nota do Editor: Urariano Mota é jornalista e escritor. Tem colaborado em sites da Espanha, de Portugal, da Rússia (no Pravda) e do Brasil. Publicou o romance Os Corações Futuristas, e tem inédito O caso Dom Vital, ainda à procura de editor.

PUBLICIDADE
ÚLTIMAS PUBLICAÇÕES SOBRE "CRÔNICAS"Índice das publicações sobre "CRÔNICAS"
31/12/2022 - 07h23 Enfim, `Arteado´!
30/12/2022 - 05h37 É pracabá
29/12/2022 - 06h33 Onde nascem os meus monstros
28/12/2022 - 06h39 Um Natal adulto
27/12/2022 - 07h36 Holy Night
26/12/2022 - 07h44 A vitória da Argentina
· FALE CONOSCO · ANUNCIE AQUI · TERMOS DE USO ·
Copyright © 1998-2025, UbaWeb. Direitos Reservados.