Volto a escrever sobre Zé do Carmo, não porque o tenha visitado; volto porque há um ano não o visito. Há um ano o vi sentado na loja de sua oficina, numa cadeira a um canto, ao lado da estátua do cangaceiro transformado em anjo; a mesma que quase o amaldiçoara aos olhos da prelazia. Ele estava tão imóvel quanto o anjo com punhal e revólver na cintura. Dir-se-ia que, só, teria assumido o ofício de banhar homens e mulheres, inculpando tentações difusas, absolvendo-os do passado incréu. Ali mesmo, longe das águas do Jordão, nas margens do rio Goiana. Zé do Carmo, então usando calça preta e camisa rosaescuro, o rosto tão tisnado quanto a camisa de cor sumida. A tisna do rosto, diga-se, meio esbranquiçada, de alguém há muito recluso. Não sei sua idade precisa, inda que aparente mais de setenta. O cumprimento, deu-mo com voz hesitante, queixo com indícios de tremuras. Vira-o, eu, moço, com fartura de músculos; amanhando o massapê com os dedos ágeis, respingando-o com o seu suor abundante. Lembra-se mesmo de mim? Tenho dúvidas, tantas quanto o piscar ininterrupto de seus olhos, catando minha silhueta de menino, de quando eu fora moleque espreitando a faina do ceramista. Sentei-me do lado de dentro do balcão, com a licença cobiçada do dono. Ele, do lado de fora, absolvendo-me da culpa de, até há pouco, não ter entendido o significado de sua obra; de quase ter absorvido a acusação de herege por suas estatuetas místicas, com o peso de homicídios nas costas. Viu-me com um caderno de anotações, atento ao que dizia com a voz, com a testa franzida de convicções. Falando, Zé, como um profeta que não se dera por satisfeito com os mais de cinquenta anos de pregação. Um artista do absurdo, porque fora inspirado por um anjo coberto de um véu diáfano, com asas para correr as nuvens... Com alpercatas de cangaceiro, punhal na cinta, revólver, patrona com balas, o chapéu de couro na cabeça; e os óculos de aro fino para quem tivessem dúvidas sobre o Lampião redivivo. Quisera dar uma imagem de presente ao papa, não conseguiu. Marcinkus e D. Hélder, perplexos, barraram-no. Nem por isso Zé do Carmo deixou de juntar a lama escura do rio, para dela extrair zumbis com rostos de anjo. Depois, a mesma imagem na tela; o pano de estopa, esticado no retângulo de madeira. Soube tirar proveito do perfil grave do cangaceiro, tornou-o uma minúcia de riqueza plástica. "Por que um cangaceiro não pode se tornar anjo!?" - pergunta-me ele. Não tenho resposta. A mira de seus olhos acode-me... acode-me e me subjuga no sobressalto da ignorância. "Um homem não é a vida inteira uma fera; ele chora e também se arrepende." Zé do Carmo intuíra assim a vida de cada um, antes de chegar aos trinta anos; antes da maturidade plena. Ensinara-o a mãe, lavadeira, que o curara com rezas e raízes do impaludismo brabo. Rezara para a santa do Carmo, logrou a cura; não o tornou coroinha, não descobriu no filho vocações para o convento. Legou-o com o nome da santa, o mesmo que o tornaria artesão famoso. Há um encanto telúrico na oficina dele, mais na oficina do que na loja, onde no balcão, nas prateleiras, nos cantos, há estatuetas, quadros, tudo disposto com simetria; a assepsia do lugar, no entanto, distancia-o da faina nervosa do artesão. Já na oficina, ao lado, com uma passagem ligando-a à loja, sente-se o cheiro do trabalho de criação. Pincéis, espátulas, latas de tinta, panos sujos, com nuanças de cores muitas. A desordem dos objetos, feito o caos depois de um empastelamento, não é indício de desleixo, é um painel de combinações plásticas. Não teria o mesmo efeito se dispusesse, ele, cada ferramenta como livros numa estante. O pincel, com as cerdas em riste sobre a lata de tinta, sob o quadro ainda se esboçando, suplica que o embebam do líquido viscoso, como se ciente fosse da obra na tela. As estatuetas com traços disformes, olham com olhos vagos, sem a mira no criador... Ou no colecionador que por certo será seduzido pelo perfil preciso do rosto, farto de convicções místicas. Zé! Lampião está no céu ou no inferno? Ele me olha com expressão madura, com desígnios de aliciamento. Antes de me responder, encosta-se numa estátua grande, de alguém com batina de padre, barba de profeta e chapéu de matuto; a estátua carrega um machado no ombro. Vê-se que ele cata a cumplicidade da estátua. "O olhar de Lampião não dizia que ele tinha parte com o bruxo do inferno, nem com o bruxo nem com Deus." Quase me alicia, Zé do Carmo. "O olhar de Lampião era de crença na própria justiça, na justiça dele!" Aliciou-me de vez, impressionou-me com o semblante luzindo descobertas. Quero perguntar mais, mas distraio-me com dois anjos armados, dançando uma música quase precisa na tela de fundo branco, como uma nuvem. De lado, há uma cangaceira abrigada num painel do mesmo formato; tem espanto nos olhos, ela, os cabelos dividem-se ao meio, descem sobre as orelhas para mostrar a face ainda querendo se afirmar no mister arriscado; dos ombros, para não deixar dúvidas, exibe as patronas cruzando-se entre os peitos... Coletes de balas cobrindo os peitos. Já sonhou com cangaceiros? Insisto. O não é peremptório, definitivo; segue-o no entanto a explicação de que na feira de Goiana, há tipos amarelos, vermelhos, rostos acobreados; todos usando chitas ordinárias, calçando chinelos de borracha, couro; gente do mesmo feitio dos homens que entraram no cangaço. Zé do Carmo não tem noção de que sua obra também é uma incursão na sociologia, é um misto de sociólogo com bruxo do massapê; bruxo místico. Zé! Empresta teus olhos inquiridores ao rosto hesitante dessa cangaceira, mistura-os com a zombaria de um saltimbanco; põe, lá no fundo dos olhos dela, uma doçura vaga, imperceptível. Para que só os estetas do povo, como tu, saibam distinguir a pureza remota que houve entre os homens. Faze-o depressa, antes que o legado tupi que há em ti, suma com o desleixo que de fato há na alvenaria tricentenária da igreja em frente. Ajudar-te-á, por certo, a mão do artífice que esculpiu o altar; a do mestre pedreiro que torneou as curvas do barroco; a do pintor que te inspirou, soprando nuvens na abóbada, já acenando o perdão por tuas estatuetas sacrílegas. Corre! Bruxo do bem... Nota do Editor: Marco Albertim é escritor e jornalista.
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