Há um silêncio de estupefação pairando por ali, no instante em que o som de esporas rivaliza com o sermão na missa das seis. Suprema heresia!!! E, maldito fosse, nem do chapéu se desfizera para adentrar a casa sagrada. À mirada reprovadora da multidão de fiéis, Malaquias irrompeu sem refrear, porque os motivos lhe pareciam de suprema urgência. Sequer apagara o cigarro.

Àquele conjunto de circunstâncias, cruzar os 35 metros do portal ao altar lhe soava como travessia de deserto. Boca seca. Descompasso cardíaco e ligeira confusão mental à frente do padre Olegário. Ficaram se olhando fixamente, sem trocar palavra. Ele tentando reencontrar a razão para estar ali, e o religioso perplexo em receber figura tão avessa a tudo que significasse fé e devoção sacra.

Alambiqueiro, e dos exímios, só reforçara ao longo da vida a imagem de que seus pactos eram de outra ordem. Não havia cachaça que o derrubasse. Mulher que o domasse. Jogo que o fizesse parar. Burro chucro que o pusesse ao chão. Ah, e puta que não conhecesse suas mínimas cicatrizes. Ainda que não tivesse feito mal a ninguém, seriam razões de sobra a que não fosse bem-vindo, mas se agarrava à convicção de que o destino o conduzira até lá. E que o compreenderiam.

O pároco, então, aproximou os ouvidos ao visitante. Álcool lhe exalando por todos os poros. Foi ouvindo e, frase a frase, o rosto se contorcendo ao tom inverossímil dos relatos. Estava chocado. Pediu que Malaquias repetisse, a que não restassem dúvidas. E ele repetiu: recebera a visita de ninguém menos que Deus, o próprio. Bom... antes ou depois da oitava dose? Não, não, não, nenhuma gota colocara no sangue naquele dia.
Por que logo ele, em lugar dos que no fundo eram uma extensão dos laços divinos, empenhados em caridade, entregues à causa de crer a todo e qualquer tempo? Sabia lá... Talvez houvesse sido eleito por provação, piedade. Se era aquilo mesmo, o que lhe fora dito ou revelado? E que feições, afinal, tinha o supremo mestre?

Malaquias descreveu uma luz, uma aura de serenidade que baixara súbito entre a coleção de tonéis. Como tudo se convertesse numa onda aconchegante de calor. E que dali se aprochegou uma silhueta diáfana, se contrapondo à penumbra do lugar. Ele por um momento pensando que delirava. Inda que incrédulo por ofício, reconhecera contornos de singularidade reveladora em cada detalhe.

Descreveu que estranhara o tom coloquial, começando com um pedido de café de coador e broa de fubá feito pelo visitante ilustre. E que ele teria dito uma só frase. Em seguida, sugerido que a compartilhasse indistintamente. Padre Olegário já o sacudia em busca da resposta, a multidão transpirava ansiedade. Malaquias se virou, agora a todos, e resumiu, da mesma forma simples, o que ouvira: “O sagrado mora nas alegrias”. A que não descressem, retirou do bolso o que restara da broa e, aos olhos surpresos, ela fora pausadamente se convertendo em voo de borboletas. Multicoloridas. Como num passe de mágica. Num recorte divino de consagração. Plena comunhão do contentamento.

Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.