Quando ela adentrou o bar, rompendo a portinhola de duas bandeiras estilo bangue-bangue, trouxe junto uma atmosfera típica dos faroestes. Ganhou todos os olhares, entre dissimulados e reverenciais. E espalhou a sensação de que um desavisado cruzara a linha de fogo do lugar. Era bela, misteriosa. Provocante. Coronel Idalêncio diria mais: insolente, provocadora. Contraventora. É que, fazia anos, se estabelecera por lá: batom era artigo proibido. Consultasse o parágrafo único do artigo sexto do Código de Condutas, e não haveria dúvida. Ao senso da junta local, era artifício que descombinava com bons costumes. Para além: remetia à serpente que quebrara os pudores em Eva. Daí, aquele contorno insinuante aos lábios, em lugar de deleite, soava a ultraje. O coronelão desfez-se do chapéu, num falso sinal de humildade, foi ajeitando as bordas do bigode e puxou a cadeira sem pedir licença. Ela tom ingênuo, sorriso panorâmico. Notou a bagagem pequena. Os cachos num louro ondulado. Logo descobriu que órfã, sonhando com vida de cantora. Mais uma!! O nome interessava pouco, porque se aproximara tão-somente para, em suas palavras, “notificar” a forasteira sobre as restrições ao batom. Ela gargalhou, imaginando senha de boas-vindas, comentário para quebrar o gelo. Não era. Pior: dava cadeia. Franziu o cenho ao confirmar a proibição. Esquadrinhou a casa. Mais três mulheres. Nenhuma ostentando pintura. Dedos trêmulos, sacou da bolsinha uma piteira e, segundo trago, um policial viria espicaçar-lhe por inteiro o cigarro. Recorresse à lei, se daria conta de que unicamente aos homens era permitido o fumo em áreas públicas. Estava chocada. Recolheu mala e, na pensão simples, cama e bilha d’água, se derreteu em choro noite afora. Refletiu, pressentiu o estômago revirar em asco, e decidiu bater pé. Noite seguinte, reapareceu com os lábios num vermelho de escandalizar. Roupas estampadas, noutra violação à monocromia reinante. Chegou dançando e cantando, num gestual em que reinventava o vazio. Até agradou. Mas o rito foi sumário: três meses de prisão. A punição virou assunto obrigatório. Sem debates, banidos dali. Por surpresa, foram surgindo burburinhos de apoio à mulher. Numa manhã, o único muro da cidade, o do cemitério, trazia em letras brancas garrafais: Libertem, Libertem. Duas semanas, e a madrugada produziu panfletos pelos quatro cantos pedindo a soltura e o fim do maldito livro de vetos. Uma boca manchada assinava o manifesto. A junta se reuniu em alerta máximo. Apertou a vigilância. Vieram cinco detenções aleatórias, a que o movimento não se espalhasse. E em seguida varreduras em armários, criados e penteadeiras. Até água-de-colônia confiscou-se. A fogueira na praça alta a ponto de rivalizar com as festas de São João. O recado era sem rodeios: não se recuaria um milímetro. Só mesmo na data marcada a estranha foi solta. Uma tarde quente. Recebeu carta sumária de expulsão. Juntou bagagem e se aprontou. Todos a postos na rua principal. Firmou-se o espanto. A mulher nua, em botas de caubói. Vinha com maquiagem completa. Passou cantando. O corpo numa malemolência de que jamais se esqueceriam. Partiu pedindo que lhe guardassem o nome, porque dela ainda ouviriam muito. O bando a escorraçou. E lhe vislumbrava futuro num hospício, numa penitenciária talvez. O nome, porém, ficou ecoando, feito fosse uma provocante sentença: Carmiranda, Carmiranda, Carmiranda... Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia, onde publica às quartas-feiras.
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