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SEÇÃO
Crônicas
17/02/2009 - 18h09
O texto da receita
Nei Duclós
 

A comida não importa e sim o processo de cozinhar. Este deve ser encarado como uma operação de guerra. Um almoço não se faz com receitas de pratos, mas com um roteiro de atividades bem planejadas. Não se trata de pontificar sobre algo que não domino (o fogão), mas tentar decifrar essa arte por meio das palavras – e palavra é o meu ramo. Uma refeição é sempre feita das mesmas coisas, o que importa é como você faz – e isso serve para o jornalismo, em que você obedece aos fundamentos, mas à sua maneira. Não se deixa queimar a comida, assim como não se escreve "com certeza".

O que mais pega no fogão? O tempo. É chato perder tempo para dedicar-se a algo que deve ser rápido, prático, saboroso. Antes de ir trabalhar, minha mãe conseguia deixar tudo pré-pronto antes da sete e meia da manhã. Voltava às onze e meia para o acabamento, bem no momento em que a horda de filhos chegava da escola "variando" de fome. Meu pai conseguia fazer um almoço, no meio do mato, em meia hora no máximo. O truque era não despregar os olhos do fogo e dar uma blitz em tudo ao mesmo tempo, pois a comida é a extensão da tua mente e depende da quantidade de gestos que você consegue colocar na roda. E não fazia um prato só, era sempre uma demonstração da grande variedade da culinária gaúcha, que não se limita ao churrasco.

Implico com os clubes de gastronomia, com aqueles diletantes que ficam de avental e chapéu de cozinheiro fingindo-se de chef e se concentram nas frescuras e salamaleques, completamente fora das necessidades de um país feito no muque. Meus pratos favoritos, aprendidos na marra, são o Frango Seja o Que Deus Quiser (você submete um frango inteiro a tudo o que você tem em casa, coloca no forno e nas mãos do Criador); a Carne na Brasa Esturricada por Fora e Crua por Dentro (bom para espantar visitas que adoram pedir para você, que é gaúcho, fazer "aquele churrasco"); sem falar no “Purê de Batatas com Maçã Esmigalhada Nada-a-ver Atrapalhando Tudo”, e no mau hábito de colocar orégano onde não se deve.

Os pratos não estão em debate, mas sim a descrição que demonstre como fazer tudo simultaneamente e de maneira integrada, funcionando como um dominó. Uma coisa engatilhada na outra. A cozinha como operação de guerra foi-me ensinado pelos verdadeiros mestres: meu tio Waldemar, que aplacava a fome das tropas do governo que lutavam contra os revolucionários nos anos 20, e era o rei do pão, do pastel, da galinha, do churrasco inesquecível de capincho na beira do rio; meu pai (seu dourado em postas à milanesa no acampamento, acompanhado de cerveja tinindo, era insuperável); e minha mãe (seu peixe desfiado com farofa não existe em nenhuma parte, senão na memória gustativa dos seus filhos).

Tenha o cuidado de não se debruçar sobre sua obra como se fosse o Paul Bocuse, pois jamais chegarás aos pés dele. Depois de servir, invente um acervo cultural sobre o almoço meia-boca que você conseguiu, pois é assim que fazem os cozinheiros: como a glória é efêmera, dura enquanto dura a fome, eles inventaram toda essa tralha de livros especializados, fotos com caras sugestivas olhando pra a câmara etc. No fundo, os cozinheiros querem que os elogios dados na hora da mesa, quando suspiros fundos e expressões de espanto se misturam à voracidade de comer, tenham continuidade.

Saciados e devidamente exaustos de tanto comentar o cardápio, seus convidados exigem retribuição, fazendo sinal de positivo perguntando pela sobremesa e o café. É hora de arrancar-lhes mais elogios, ameaçando-os de que não voltará mais ao fogão se não sucumbirem aos seus apelos de falarem sobre o que acabaram de se deliciar.

Sei que é frustrante não dar a receita do peixe desfiado com farofa da minha mãe, mas confesso que não sei fazer. Eu era muito criança na época e quando aprendi a preparar alguma coisa, era tarde demais. No fundo, talvez, a gente espera que os verdadeiros mestres venham em nosso socorro. Pois nada melhor do que ficar no outro lado da operação e se limitar a comer. É doce encarnar o papel de Distribuidor de Positivos depois que tudo é devorado sem dó.


Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.

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