Dividir a sociedade em castas ou classes herméticas, qualquer que seja a justificativa “ideológica”, sempre teve um único objetivo: perpetuar o poder de quem o detinha, com tudo o que ele potencializa: acesso ao que era bom para todos, mas não era produzido em quantidade suficiente etc. Também era preciso que alguém fizesse certos trabalhos, tais como: coletar e dispor os resíduos urbanos; sepultar e exumar cadáveres. As elites não queriam fazer isso, pois tinham esses trabalhos como menos “nobres”. Além disso, considerando que muitas das estruturas sociais organizadas em castas foram estabelecidas há milhares de anos, naqueles tempos as condições de higiene não eram as mais adequadas. Em tempos de misticismo predominante, dizer que uns haviam nascido para isso e outros para aquilo era uma solução eficiente, reforçada por algumas chibatadas, para fixar a idéia. Para os de “sangue azul”, criados distantes de todos os “males do mundo”, tocar um dos responsáveis por esses tipos de serviços, para os quais não tinham proteção alguma, era certeza de contaminação. O problema é que algumas culturas transformaram esse sistema arcaico numa tradição secular, estanque, imutável, preconceituosa. Na sociedade moderna, teoricamente igualitária, pais que exortam seus filhos a seguirem suas profissões consideram isso motivo de orgulho e garantia de um futuro promissor. Mas, o que dizer de pessoas que, em função de sua “origem”, são obrigadas a permanecer eternamente na mesma condição social, porque esse é seu “destino”, seu “kharma”. Pessoas que recebem um carimbo invisível, pois não há evidência orgânica, desde o ventre materno, cruelmente gravado e reavivado em suas mentes com o fogo da discriminação institucionalizada. Essas práticas podem parecer absurdas, não? Mas podem ser constatadas até hoje em várias culturas. E não é preciso ir até a Ásia ou África para encontrar exemplos desse tipo de discriminação, “consagrada” por lideranças políticas e religiosas, mas que não encontra respaldo em nenhum dos grandes espíritos que iluminaram a humanidade, dos humanamente divinos aos divinamente humanos. Estes sempre difundiram luz igual para todos. Mas isso não interessava aos defensores da “ordem estabelecida”, pois eliminar as regras correspondia tirar-lhes um poder temporal tradicional, sectário, repleto de misticismo, que conduzia povos pela irracionalidade e pelo medo. Até bem pouco tempo – e falo do Século XX -, cidades interioranas tinhas calçadas e locais públicos, inclusive templos religiosos, distintos para a raça “A” e “B”. Empregados reverenciavam seus patrões. Até beijavam suas mãos! Nos “democráticos” EUA, certos estados praticavam leis semelhantes ao “apartheid” sul-africano até a década de 1960. Mas esses são exemplos “dramáticos” da forma como as classes dominantes ainda procuram manter sua ascendência, mesmo em algumas sociedades que se dizem “evoluídas”, material ou espiritualmente. Existem exemplos mais próximos do cotidiano, que às vezes passam despercebidos, mas mantêm práticas discriminatórias, preconceituosas. A definição das classes “A”, “B”, “C”, “D” e “E”, dentro do modelo sócio-econômico predominante, é útil para a definição de políticas públicas de governos democráticos. Mas tem gente que continua a utilizá-las como fator de distanciamento. Apóiam-se em “estatísticas” para discriminarem origem, etnias, raças. Só perdoam quem é rico, famoso ou bonito. Quem discrimina assim pode ser considerado social, moral ou espiritualmente elevado? Essas classes podem fazer parte da sociedade, desde que haja mobilidade entre elas. Além disso, no mundo ocidental, por exemplo, um açougueiro ou um médico legista não são considerados “intocáveis”; coveiros usam equipamentos de proteção adequados. Aliás, mesmo na Antiguidade e nas sociedades que mantêm a estrutura de castas, os médicos sempre lidavam com a doença e com a morte, mas nunca foram discriminados por isso! Afinal, quando a vida estava diretamente em suas mãos, não fazia sentido considerá-los “impuros”... Como os usos e costumes beiram a hipocrisia! Assim, se todos fazem parte da mesma sociedade - e de algo muito maior que qualquer sociedade: a humanidade! -, porque alguns insistem em dizer, arrogantemente, que fazem parte da “sociedade”, ou que quando esses poucos se reúnem, ali está “toda sociedade”. Considerando que algumas linhagens remetem ao que a humanidade tenta sobrepujar a milênios: escravidão, domínio pela violência física e psicológica sustentados por preconceitos de toda espécie, isso seria algo a deplorar. Mas isso também seria preconceito, não? Um nome de família, ascendência estrangeira ou qualquer outra justificativa que coloque, a priori, seres humanos acima de seres humanos é irracional. Estruturas sociais piramidais como estas, dissimuladas ou institucionalizadas, ignoram que o topo apóia-se na base, mesmo que crie e imponha a ilusão de que a sustenta. É certo que qualquer estrutura social precisa de lideranças, mas é um absurdo histórico que elas fiquem restritas a castas ou elites herméticas, como se ascendência ou tradição fossem certezas de inteligência e sabedoria. Grupos que têm todas as oportunidades, mesmo sem merecê-las ou transformá-las em algo útil para a sociedade real: a que existe fora de seu mundo “ideal” e exclusivo. Grupos que negam oportunidades a quem pode ser “solo fértil”, preferindo apenas explorá-lo ou, simplesmente, pisoteá-lo. Mas há quem acredite, por conveniência maliciosa ou crença dogmática anacrônica, que essas diferenças devem persistir e são justas e sensatas. Elas podem ter feito sentido nos primórdios da civilização, quanto o instinto selvagem era patente. Mas hoje os contextos são totalmente outros. Ou, ao menos, deveriam ser. Nesse sentido, podemos considerar estranho que algumas culturas ainda preservem estratificações sociais rígidas. Mas, francamente, basta olhar para os lados e para si próprio para vermos que também temos muito de brâmanes e dalits dentro e fora de cada um de nós. Nota do Editor: Adilson Luiz Gonçalves é mestre em educação, escritor, engenheiro, professor universitário (UNISANTOS e UNISANTA) e compositor. E-mail: prof_adilson_luiz@yahoo.com.br.
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