Quais são as invasões bárbaras? As primeiras imagens do filme vão revelando: enfermarias entulhadas de pacientes, cuja última dose de tratamento humano, humanitário, é receber hóstias de uma freira. Ah, para o primeiro mundo isto é uma metáfora. Para nós, do terceiro, acostumados aos hospitais latinos, ah, as hóstias não dariam para a fome dos cachorros que gemem e ganem nos corredores de nossas enfermarias. Isto, aquele hospital, ainda não é ser bárbaro. Onde, pois, as invasões bárbaras? Elas vêm com o poder, sem pudor, com a sedução e sedação do dinheiro. À primeira vista, elas vêm pelo ar, nas torres gêmeas atingidas em 11 de setembro. À primeira vista, elas vêm na decadência do serviço público, no controle burocrático do trabalho pelos sindicatos. À primeira vista elas são a queda de qualidade no atendimento hospitalar em um país do primeiro mundo. À segunda vista, no entanto, elas são a renovação do poder do dinheiro, que invade todas as relações assemelhadas a humanas, para não dizer até mesmo as humanas. E agora, com os olhos bem abertos, podemos ver algumas das qualidades de As Invasões Bárbaras. É um filme que deixa pelo caminho da nossa percepção algumas lições laterais, como se deixasse cair flores distraidamente, algumas até de cheiro ruim. Nada eloqüente, marcado, grande, Hamlet. Mais para Iago, insinuado, pelos lados, de passagem. “Lições”: a) o quanto o dinheiro vale pouco; b) o quanto, ainda assim, compra tudo. O quanto nada é, diante da morte. Se o dinheiro tivesse o poder com que se proclama, há muito teria assalariado o Diabo e o bom Deus. Mais, muito mais do que aquele tapete mágico das Mil e Uma Noites. Apenas e muito simplesmente teria feito de todo capitalista um imortal. Nos momentos críticos, ou melhor, na vizinhança de quando chegamos ao fim, a sua impotência e inutilidade são flagrantes. E nos perdoem o trocadilho: é fragrante. Há um doce perfume de desilusão, de desencanto. E que faz saltar aos olhos o valor de um abraço, do amor, da amizade. De um reconhecimento fundo, atingível naquele difícil mundo e canto em que a porcaria não venceu. Mas já então temos que nos guardar da fábula romântica. E atingimos a segunda “lição”: o quanto, esse impotente diante do fundamental, compra. Clark Gable, com o pragmatismo típico dos americanos, dizia que dinheiro só não compra amor, mas que compraria excelentes imitações. No filme, o dinheiro compra até solidariedade, compra até reconhecimento a um velho professor, desencantado no câncer. E ele, dinheiro, impotente dourado e potente cínico diante da dignidade dos que nada têm, a não ser a teimosia, a não ser, diria esse deus, um vazio orgulho que não tem onde se assentar, não recua: a uma jovem que desiste de receber a sua parte pela encenação de carinho a um velho professor, ele diz, aos cúmplices da arrependida: - “Vocês se importam de receber a parte dela?”. Há muitos anos, dizíamos ao então jovem Givaldo Gualberto que ele não sabia criticar um filme. Porque sempre que lhe pediam uma opinião, um comentário, ele desandava e se danava a contar todo o enredo da película. Não cairemos no erro que então criticávamos. É preferível falar do filme pelos reflexos que sofremos de suas imagens. Saímos do cinema, eu e minha esposa, calados. Eu sem saber o que comentar sobre o reencontro de um pai com seu filho, ele um velho socialista, o filho um novo bárbaro. Eu estava mudo, sem saber o que achar sobre aquele suave drama de um homem que se vai com um câncer. Quando atingimos os corredores do shopping, repletos de luzes e decoração de natal, ela explodiu num pranto. Arrebentou-se em lágrimas. Porque esse filme a levou aos últimos dias do seu próprio pai. Ficamos então sem saber mais para onde ir. Sem saber sequer por onde sair. Quando alcançamos o estacionamento, lá fora as setas apontavam Leste, Oeste, Norte, Sul. Pegamos uma qualquer, porque todas eram inúteis. Nota do Editor: Urariano Mota é escritor e jornalista.
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