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Crônicas
07/03/2009 - 17h07
Me tragam ao menos flores
Eduardo Murta
 

Não mais que vinte e poucos anos, e as missões me chegavam feito fossem vento rápido de duelo. Mandando que eu sacasse já – ou morresse. Era desse assombro o desafio me caindo ao colo naquela quarta-feira. Nem perfil de Rainha do Carnaval, nem descrição light da capital às moscas sob o reinado de Momo. Ninguém menos que Zegildásio me incumbiam de encontrar, documentar, fotografar, desnudar à opinião pública.

Sem sucesso, a polícia o caçava havia anos. Cópia de sua ficha repousava à mesa do chefe. Quilométrica. Beirando o estarrecedor. Fraticida aos 7. Latrocida aos 9. Quase suicida aos 11. Um escândalo aos 13, desfalcando sacristias. Uma aberração aos 15, subjugando viúvas à cama, limpando seus cofres. Aos 16, era absoluto no morro. Vielas pobres, se encastelara numa fortaleza móvel e intransponível. A cada semana num abrigo.

Mirei bem a única imagem dele publicada. Cabelos ao meio das costas, barba rala, nariz cicatrizado. Pele parda. Me fixei nos olhos, porque eles me levariam até ele. Subi a vila travestido de amolador de facas, a que perambulasse sem suspeitas por lá. Aluguei barraco dois cômodos. Me enturmei. Nove semanas e veio a primeira pista. Bar escuro, grota sem saída, três postos de vigilância. Passei.

Fumaça densa dominando, me detive num sujeito em chapéu de boiadeiro, terno de camelô. Bota gomeira com a saliência dos dedões fazendo vinco ao couro. Terceira mesa à esquerda, abaixo do ventilador. Tinha órbitas de genuíno matador. Notei o séquito fazendo-lhe guarda velada, flagrei os sinais e, num instante, virei eu o alvo prestes a cair.

Ao temor, me antecipei. Tremia contando os seis passos em direção a ele. Sussurrei meu nome e, sem rodeios, revelei por que estava ali. O bruto me medindo dos pés à cabeça, como não crendo na ousadia que me movera. Perguntou, instantâneo, se eu não tinha medo de morrer. Agora eu gaguejava. Tinha sim!!! Ao cubo! E o vapor da urina foi viajando das coxas ao calcanhar. Ouvi risada de deboche.

Veio logo um tapão às costas, estilo velha companheiragem. Uma cadeira, o copo de cachaça vazando limites. Nenhuma palavra. Em seguida, torresmo gordo, fichas de vitrolão, putas de maiô assediando. Quase gargalhei à voz fina, contraequivalência àquele corpo em sobras laterais. Zegildásio afirmando que daria a entrevista, sob a condição de que eu cuidasse de sua biografia. Fechado. Engatilhei gravador, papel, caneta, e num segundo o homem desembestaria em incontinência verbal.

Sacou caderno em espiral de arame, capa de mulher pelada. Soava a um diário de bordo. Leu parte, contou outras e, a meu juízo, inventou uma coleção mais. Se atribuiu, aos 35 anos, 72 mortes. Ainda guardava o garfo em que, aos 7, sangrara a irmã de 9 pelo comando do canal de tevê. Exibiu também arquivo em que unhas arrancadas a alicate tinham nome, sobrenome do desafeto e desfecho do caso.

Só parou ao primeiro sinal da manhã. Por ritual, rezava para adormecer. Pulou da cama ao meio-dia, me permitiu vê-lo devorando dúzia de ovos crus. Ao espelhinho no quintal, aparou a barba com facão. Almocei e parti. O texto ganhou duas páginas de jornal, foto de capa. E envenenou meu destino, ao revelar, inocentemente, seu mais sombrio segredo: o cabra comia usando colher. Contam que minha morte foi rápida e indolor. Tiro à queima-roupa, acima dos olhos. O corpo postado em cova rasa, junto à menor das antenas da serra. Se vê daí, de suas janelas. Podendo, me tragam flores.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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