Como não adoto a rígida ética deontológica de Kant e admito, portanto, que todas as normas éticas e/ou jurídicas comportam exceções - desde que estas mesmas sejam devidamente justificadas - sou contra o aborto, mas reconheço a existência de exceções. De acordo com o direito brasileiro, há duas: (1) quando o aborto é feito, de modo a evitar risco de morte para a mãe; (2) quando é feito numa gravidez indesejada, resultante de estupro. Observo que ambas se aplicam ao caso do padastro que engravidou sua filha de 9 anos, uma menor e impúbere, caracterizando, portanto, um estupro presumido aos olhos da lei, além de abominável crime de pedofilia. Um indivíduo que faz tais coisas devia apodrecer atrás das grades, porque é um perigo constante para a sociedade. Ou, caso identificada sua insanidade mental, enviado diretamente para um manicômio judiciário. Não será considerado menos perigoso neste outro caso. Peço aos caríssimos leitores que consideram o sofrimento moral de uma menina de 9 anos que é estuprada pelo próprio padastro e - caso não tivesse sido feito o aborto - teria corrido risco de morte no parto e tendo ainda que enfrentar a humilhante condição de ser mãe e irmã – não-consangüínea, mas por afinidade - do mesmo bebê ao mesmo tempo! Difícil imaginar situação moral mais degradante! Em casos como o da menina, assim como nos casos de anencefallia, penso que o aborto é eticamente justificável. A mulher grávida de um embrião anencéfalo está carregando em seu útero um indivíduo dotado apenas de vida vegetativa, que, quer venha a nascer, nunca terá uma vida no sentido pleno. Viverá vegetativamente apenas alguns dias, para depois morrer. É extremamente cruel submeter uma mãe a carregar no seu útero um ser semivivo e futuro – num futuro bem próximo – cadáver certo. Mesmo que o possível leitor não seja mulher, imagine um sofrimento deste tipo! Coloque-se no lugar de uma mãe vivendo uma condição como essa! Fora estes e possíveis casos semelhantes, penso que o aborto não dever ser “descriminado”, ou seja: deixar de ser crime. Pois é um homicídio doloso e, como tal, devendo ser punido de acordo com a lei. A afirmação de que a mulher goza do direito sobre o seu corpo, podendo ser utilizado por ela como bem entender, é uma asserção válida. Mas nos casos de ela querer fazer musculação, entrar para um batalhão de infantaria, vender e/ou alugar seu corpo, praticar halterofilismo e outros assemelhados. Ocorre que um embrião não é “parte do corpo” da mulher como seu coração, seu fígado, seus braços e pernas: o embrião é outro corpo, o de um indivíduo humano, ligado ao dela pelo cordão umbilical e totalmente dependente do dela na vida intrauterina. Quanto ao bispo que “excomungou” a mãe, os médicos e filha, mas se silenciou diante do crime hediondo do padastro, penso que no primeiro caso ele agiu de acordo com o direito canônico que, segundo o mesmo, quem pratica o aborto é automaticamente excomungado, sem que seja preciso alguém declarar tal coisa. Além disso, tal coisa só faz sentido e gera efeito para quem é católico.... E, no segundo caso, ele agiu de acordo a moral católica, que condena o aborto em plena concordância com sua ética deontológica, não admitindo exceções a uma norma. Mas no, segundo caso, foi incoerente, à medida mesma que se silenciou diante do crime hediondo do padastro. É certo que um estupro é crime menos grave do que um homicídio, mas no caso em questão não ficou caracterizado um homicídio aos olhos da lei, mas ficou caracterizado um estupro tanto aos olhos da lei como aos olhos da ética! Mas a atitude do bispo está de acordo com as pastorais dos presídios, que atendem criminosos da pior espécie, mas não há “pastorais das vítimas” desses mesmos meliantes. Não por mero acaso o bispo em questão é adepto da teologia da libertação, “o marxismo de batina e água benta”, como disse o saudoso Roberto Campos ou o atuante embaixador Meira Penna. [Não sei dizer qual dos dois, mas estou certo de que foi um ou outro]. Além disso tenho grande admiração por ambos com os quais costumo concordar em gênero, grau e número. Nota do Editor: Mario Guerreiro (xerxes39@gmail.com) é Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade. Autor de obras como Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000). Liberdade ou Igualdade (Porto Alegre, EDIOUCRS, 2002).
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