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Crônicas
28/03/2009 - 12h03
Foi gol, mas partiu meu coração
Eduardo Murta
 

Cá estou eu, os ponteiros devorando a madrugada, ainda me ardendo no dilema que caberia numa canção de gosto duvidoso ou num poema delicadamente piegas: a quem pertence meu coração? Examine aqui, mais, mais perto, me ajude a desatar os nós desse emaranhado em que me meti. Por piedade, me ilumine, porque talvez sobre em você exatamente o que falta a esse meio homem em que me transformei: convicção para fazer uma escolha e uma renúncia simultâneas.

Deixo de lado o rodeio e vou direito ao ponto. Devo ficar com Cris ou com Bia? Ah, se aquiete, logo já lhe explico, e esse alvoroço só serviria pra me confundir além das margens em que estou. Se não percebe, sou um náufrago. Seja paciente, porque falo baixo e pausadamente. Às vezes um pouco prolixo, ocasionalmente hermético. Tentarei mais clareza adiante. Como? Quer que eu largue o copo de uísque enquanto me ouve? Não, não, sinto, mas, hoje, não. É uma espécie de porto sentimental, compreende?

Mexer assim nas pedras de gelo é como carinhasse minhas angústias. Se me permite, vou começar do marco zero. Murilo leva o dedo à boca, deixa a bebida destilar-se por entre os dentes. Há um desconforto em braços, pernas, tronco, em tudo o que se move ou respira naquela sala. É ele quem retoma a fala, se ajeitando à poltrona: Conheci Cris num desses acampamentos de pé de serra, em que os relógios vão para o museu do esquecimento e contar o tempo é o que menos importa.

Me lembro como se fosse hoje. Ela pés descalços, sem esmalte, dedos de bonequinha. Tatuagem leve ao pescoço, o corte de cabelo pondo a nuca à mostra. Flagrei identidade antes mesmo que soasse sua voz. Tom cândido, que lembrava abraços de reencontro. Sim, sim, daqueles esperados com uma ansiedade quase infantil. Ah, doçura!!! Murilo descreve, pára, corrige a borda do olho já marejando.

Tosse, a que disfarçasse o embaraço. E prossegue. Com Cris um quê de especial foi se revelando no que havia de mais simples: o café da manhã com uma só pétala de rosa manchada em batom; o verso brejeiro, feito em papel de pão. Tinha mais, tinha mais. Um olhar que desnudava e renovava aquilo que fosse tosco ou repetitivo. E o bom, ela me tornava melhor. Até me fez soltar o canário Xodó, com direito a festa de despedida, bolo e choro.

Agora veja que curiosidade... Dá aí uma licença pra eu fazer uma fumaça, certo? Murilo colhe o maço, dos especiais, à base de menta, bate a ponta do cigarro três vezes à unha e faz pose de concha na aproximação do isqueiro, ainda que vento não haja por ali. É ele de volta, baforando: ...note que curiosa é essa vida. Foi numa dessas andanças a esmo, tentando rever Xodó, na Praça da Liberdade, que vislumbrei Bia. Tabaco mentolado, como o meu, roupas punk, estilo decifra-me ou te devoro, me aproximei.

Não sou de meias-palavras. Vê se não vá me culpar: Cris quase um ano fora, em pós-graduação, eu carente... Logo sorri, contei por que estava lá. Ela, durona a princípio, foi se abrindo. Não me arrependo de nada. Fui arrebatado até o último fio de cabelo. Junto a Bia me visitava a sensação de estar no olho do furacão. E me dava prazer aquilo. Sexo dentro do carro, nas ruas, o suvenir subtraído do hotel, as festas heavy, uns temperos de alucinação...

O duro é agora. Me ouça, me ouça, dê guia a esse descompasso. Cris retornou quatro meses antes do previsto e eu simplesmente não estou pronto pra dizer adeus. Nem pra deixar Bia. Vê se me faço entender: com Cris, me chega aquele sentimento de mergulho, plenitude, equilíbrio na imensidão. Com Bia, tudo se inflama, imitando comemorações tresloucadas de gol, gol, gol, gol... Já sei, já sei, já sei!

Pausa. Foco brusco na seção de transplantes do hospital. O médico reluta em compreender as razões do homem clinicamente são, bêbado à quintessência, insistindo em doar meio coração a cada uma das mulheres amadas. Ah, esses tontos... Melhor esquecê-los. Então, cá estou eu, só, os ponteiros devorando a madrugada, ora me mergulhando por inteiro na banheira da casa, ora indo à janela e gritando gol, gol, gol, gol... O mundo haverá de me entender.


Nota do Editor: Eduardo Murta é jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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