- Tem namoradinho rondando Lídia Isadora, moço bem apessoado. - Quê? - É o que lhe digo, não queria trazer preocupação para o senhor meu marido, mas... Franzindo o cenho, o coronel tranca o ferrolho. Fecha questão em definitivo. É o sinal de que não pode, a filha envolta em vestidinho branco é imaculada até disposição em contrário e expressa ordem do dono, e essa ordem não virá. Filha da Igreja antes de ser sua filha. Essa não tem jeito, é prometida pra Jesus. Quase natimorta, escapou Deus sabe como. Fez promessa se vivesse, era dever cumprir. Nunca um desejo de carne havia de tirar o sossego desse corpo magro de menina. Não da minha menina, que essa é pra convento de clausura. Vai comer moela às vezes e jejuar quase sempre por amor de Nosso Senhor, assim seja e há de ser, ou não me chamo Juvenal. De domingo, a imbuia dura onde ajoelha, veludo roçando a maçã lisa do rosto. A paz da capela, o padre escuta e não encara. - Não que eu tenha pecado, padre, mas no descuido deixei entrar no juízo uns pensamentos descarados. Um moço vem querendo coisas, olha fundo no olho, se achega sem convite. - Menina, você tão nova. Que mais? - Não sei se conto ou não conto, não virou acontecência, ficou no quase. De todo modo... Pai vem vindo, barulho de molho de muitas chaves. Coronel de porte e pose de dono de capitania. Pisa mais forte que o costume, sinal de que a vara de marmelo vai cantar. Demorou nadica. Uma vergastada, duas, três. Acolhe calada o castigo, os olhos revirando sem chance de revide ou de explicação. - E você, mulher, vigie de perto e me avise de abuso, que boto jagunço no rasto do desaforado. Tem duas mães, a menina. A de verdade, zanzando desnorteada, sem ação de serventia. E tem a Dita, ama de leite cheia de simpatias e rezas, mãe postiça que não deixa ao deus-dará. - Passa um bife, Dita, ela tem fome. Trincheira providencial, a Dita, na hora de evitar surra de rabo de tatu. Se acontecia de não conseguir, vinha com a salmoura, junto com afago e colo. Tirava o avental molhado e chegava acudindo de toalha felpuda numa mão e bacia de lenitivo na outra, e era bom ser filho de criação da Dita e estar inteiro sob a tulha de seus braços. Assim, nesses bocados, a sova ia caindo mais fácil no esquecimento. Lenta mágoa desmanchando pela noite na fazenda, também lenta, onde só grilo se escutava no adiantado da hora. A toda purinha, atrás dos óculos de fundo de garrafa, pedia a Deus o perdão ao pai, defensor do feudo e da honra da família. Que dessa porteira pra dentro não passe nem a miséria, nem a desgraça, nem a tentação. Se a ira divina se abater sobre essa roça, que seja eu a levada para purgar o pecado que quase nem cometi. Na varanda, o coronel não se ressente, fez o que pai que se preza tem de fazer nesses casos. Pica o fumo e balança na cadeira, pensando no preço da arroba do boi. Assim acontecia de ser sempre, naquela lonjura que não se chega, margeando o cafundó.
Nota do Editor: Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário em Campinas (SP), beatlemaníaco empedernido e adora livros e filmes que tratem sobre viagens no tempo. É colaborador do jornal O Municipio, de São João da Boa Vista, e tem coluna em diversas revistas eletrônicas.
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