A história contemporânea ganha mais um mito, mas os argentinos e a América do Sul perdem um autêntico líder. Em meio século de atividade verdadeiramente política, Raúl Alfonsín - que morreu na terça-feira à noite - foi deputado estadual e federal, preso político e presidente da República, o primeiro civil a governar o vizinho país depois da ditadura que ali se instalou de 1976 a 1983. Naquele período ocupou-se em denunciar a violação dos direitos humanos e a perseguição política. Depois, quando no poder, determinou o processo e julgamento tanto dos integrantes e colaboradores das juntas militares quanto dos guerrilheiros, levando-os à prisão. No Brasil é mais lembrado como o governante argentino que assinou, ao lado de José Sarney, os tratados de integração comercial que deram origem ao Mercosul. Com seus gestos largos e graves, os portenhos hoje choram a morte daquele que foi, para eles, o "Pai da Democracia". Embora não tenha conseguido terminar o seu mandato - em razão da crise causada pela hiperinflação, entregou o poder com seis meses de antecedência - Alfonsín continuou respeitado e admirado até por adversários. Jamais teve sua imagem maculada por escândalos de corrupção e outros problemas que levaram seus sucessores às barras dos tribunais e até para a prisão. Tanto que, sem grande dificuldade, sem dúvida, será colocado na galeria dos mitos políticos, que os argentinos sabem tão bem cultuar, onde pontificam Juan Domingo e Evita Perón. Reservadas as proporções e as diferenças nacionais, Alfonsín está para os argentinos como o nosso Tancredo Neves para o Brasil. Mas teve o tempo de fazer lá o que Tancredo não conseguiu aqui em razão de sua morte prematura. Ambos, no entanto, estiveram presentes aos momentos mais críticos das respectivas políticas nacionais, para evitar a crise e buscar a governabilidade e a conciliação nacional, que as disputas e interesses políticos muitas vezes fazem periclitar. Foram verdadeiros pacifistas. No mundo globalizado e praticamente isento da bipolaridade direita-esquerda, é visível a importância da democracia e do trabalho desenvolvido pelos seus cultores. Especialmente aqueles que tiveram a oportunidade de atuar em seu favor nos períodos de arbítrio e falta de liberdades. Esses líderes deram seu trabalho - alguns até a própria vida - para construir o quadro mundial de hoje que, apesar da crise econômica, é mais administrável do que em dificuldades anteriores, como a de 1929, por exemplo, onde a quebra da Bolsa norte-americana devastou o mundo, inclusive o Brasil. O momento em que se perde uma dessas figuras exponenciais é a oportunidade de raciocinar sobre sua atividade e, principalmente, tomá-la como exemplo do que se deve e até do que não se deve fazer. Políticos, empresários, educadores, cientistas sociais; ao verem a comoção dos argentinos com a perda do seu líder, procurem pensar pelo menos um pouco sobre a sua obra e as repercussões para os dias atuais. Isso faz bem e pode até levar à chave de problemas contemporâneos. Não se esqueçam que o futuro se constrói através da soma do passado com o presente e as necessárias correções de percurso... Louve-se Alfonsín, Tancredo, Getúlio, Ulysses, Montoro e todos aqueles que estiveram além de seu tempo e dedicados à causa do povo! Nota do Editor: Dirceu Cardoso Gonçalves é tenente da Polícia Militar do Estado de São Paulo e dirigente da ASPOMIL (Associação de Assist. Social dos Policiais Militares de São Paulo).
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