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Crônicas
01/05/2009 - 17h03
Veneno e beleza
José Nivaldo Cordeiro - Parlata
 
Crônica do Quinho

Encontrei Quinho absorto, olhando a boca do metrô Consolação, saída da Augusta, por volta das oito da manhã. “Bom dia, Quinho. O que tanto olha, meu amigo?” Ele, sério, quase sem se virar: “Bom dia, doutor. Estou olhando as moças que passam”. Sorri. “Quinho, você não fez voto de castidade? Você disse, não? Não deveria ignorar as moças?” Ele: “Doutor, estou olhando de um jeito científico, não de um concupiscente”. Pasmei.

– Que raio de jeito científico é esse de olhar as mulheres? - Perguntei.

– Sabe, doutor, eu todo dia entro ali no grande baú de livros, a livraria grandona do Conjunto Nacional. Ontem me distrai lendo lá uma passagem do livro do Cervantes, Dom Quixote. No original, que o baú aí tem tudo. Eu li uma passagem que até anotei aqui, de tão bonita e singular. Veja.

Quim me passou o papel. Estava escrito em espanhol: “Cuanto más, que habéis de considerar que yo no escogí la hermosura que tengo; que, tal cual es, el cielo me la dio de gracia, sin yo pedilla ni escogella. Y, así como la víbora no merece ser culpada por la ponzoña que tiene, puesto que con ella mata, por habérsela dado naturaleza, tampoco yo merezco ser reprehendida por ser hermosa; que la hermosura en la mujer honesta es como el fuego apartado o como la espada aguda, que ni él quema ni ella corta a quien a ellos no se acerca... Yo nací libre, y para poder vivir libre escogí la soledad de los campos. Los árboles destas montañas son mi compañía, las claras aguas destos arroyos mis espejos; con los árboles y con las aguas comunico mis pensamientos y hermosura. Fuego soy apartado y espada puesta lejos”.

Completou Quinho:

– Esta fala foi posta por Cervantes na boca do personagem Marcela, que aparece depois que o homem que lhe amava se matou por não ser correspondido. O interessante aqui, doutor, é como um homem como Cervantes via o feminino, um homem ainda com a alma medieval. Associar a beleza feminina com o veneno da víbora é algo que tem ressonância bíblica. Veja que Marcela se refugia na floresta para não seduzir ninguém e assim assegurar sua liberdade. Interessante a associação entre recato e liberdade feminina, o oposto dos tempos atuais. A própria honestidade feminina é o seu recato.

Fiquei pensativo. Quinho continuou:

– Veja que transformação, doutor. Essas meninas passam aqui exibindo as roupas íntimas, os seios, as pernas... A anatomia feminina perdeu qualquer segredo. Tem um lado bom que faz a delícia dos rapazes, mas o lado venenoso da formosura permanece. Tudo que está na Bíblia tem um motivo e isso ainda era claro para Cervantes. “Sou fogo apagado e espada posta longe” é algo que essas moças não querem nunca dizer. Trazem seu fogo para queimar aqui na Paulista, espada em riste. De certa forma temos a justificativa de porque até o bispo reprodutor paraguaio caiu em tentação. Não precisa ir buscar mulheres, elas vêm e estão todas disponíveis. Essa Paulista é um serralho a céu aberto.

Não pude deixar de rir-me. A situação descrita realmente era um contraste com o texto cervantino. Perguntei:

– Quinho, isso é bom ou ruim?

– Doutor, é um dos sinais da nossa decadência moral, que tem várias dimensões e facetas. Uma delas é o vestuário. Outra o recato pessoal. Outra a linguagem. Linguagem sexual é o mais comum agora, toda gente fala f.., vá tomar... fdp... Merda virou a interjeição mais freqüente. Palavrões são o veículo de comunicação mais usado, compatível com as vestes e a moralidade geral. É deprimente ouvir mulheres dizerem: “Estou puta da vida” quando querem demonstrar insatisfação, em substituição à expressão vernacular “Estou fula da vida”. Quanta diferença faz uma simples mudança de letra. Dizem tudo e não se dão conta de nossa tragédia moral. Uma confissão.

– Talvez isso explique o relaxamento político em que vivemos, comentei.

– Sim, doutor, não tem como ser diferente. Vimos outro dia comentando aqueles livros dos filósofos que o império do homem massa está consolidado, com ele a vulgarização de tudo. Olhe, veja essa moça... (Apontou para uma passante, discretamente). Nos meus tempos de criança nem as profissionais do sexo vestiam-se assim. Saia curta, barriga de fora, o horrível sutiã de alças a mostra. Vê-se até a cor da roupa de baixo. Isso não é vestir-se, doutor, é desnudar-se. Essa é a dimensão feminina do homem massa, traduzida sobretudo no grande mau gosto no vestir-se e no falar. Ao contrário de Marcela, as mulheres de hoje querem é o exibir-se, deixar o fogo à mostra, para usar a deliciosa expressão metafórica de Cervantes.

Não tinha o que dizer. Quinho continuou:

– Doutor, antigamente o conceito de vestir-se era outro. Vestir-se não era meramente cobrir a pele, mas também a anatomia. O respeito recíproco entre os sexos pressupunha isso. Quando se quebra essa regra elementar não há condições de manter o decoro. A espada muito próxima corta e o fogo muito perto queima. Há que fecharem-se os olhos, vestir o corpo. Para isso servem roupas adequadas.

– Você não tem visto as praias - murmurei.

– Mas tenho visto fotos, doutor. Nenhum segredo feminino está mais guardado. Voltamos aos tempos pagãos - replicou.

– Quinho, não tem como restabelecer a moralidade cristã.

– Eu sei, doutor, e essa é toda a nossa tragédia coletiva. Não é saudosismo da minha parte. É conclusão. É o perigo que ronda, em todas as dimensões. O abaixamento do nível moral é a marca dos tempos.

Despedi-me. Deixei Quinho com seu esforço científico e fui trabalhar.


Nota do Editor: José Nivaldo Cordeiro (www.nivaldocordeiro.net) é executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.

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