Milhões de brasileiros assistiram o arranca-rabo que teve lugar no STF e foi reproduzido por vários jornais televisivos. Como a maioria deles é composta de analfabetos funcionais e indigentes culturais, até gostou da coisa: parecia aqueles programas de auditório de baixíssimo nível da TV em que figuras famosas da mídia lavam roupa suja em público, vomitando imprecações e remetendo impropérios umas às outras. Tudo estaria muito bom e muito bem, se a coisa se passasse num destes botecos pés-sujos, entre um copo de cerveja e outro, numa acalorada tertúlia, após um jogo de futebol. Mas, lamentavelmente, o cenário era outro e bem diferente... A coisa se passou no STF e a televisão se limitou a registrar o deplorável episódio de baixíssimo nível. Tal evento, infelizmente, só deixou chocada uma meia dúzia de gatos pingados, destes que ainda têm a capacidade de se ruborizar e se indignar diante desse lamaçal em que chafurdam os Três Poderes desta Casa da Mãe Joana em que se transformou um país chamado Brasil, ou melhor: a Bruzundanga, para usar a correta nomeação do saudoso Lima Barreto. Que vergonha! Que baixaria! Jamais pensei que um dia assistiria a uma pornochanchada desse naipe tendo como cenário a Suprema Corte e como protagonistas os preclaros e valorosos guardiões da Constituição. E já estão aparecendo espíritos açodados e pudicos propondo a televisão não transmitir mais ao vivo as sessões do STF. Mas isto assemelha-se a empurrar a sujeira para baixo do tapete ou tirar o sofá da sala... Exigimos transparência dos Três Poderes, mesmo que seja para ouvir bate-bocas e impropérios. Ao menos, não estarão escondendo nada, como é habitual entre os membros do Executivo e do Legislativo. O ponto alto do arranca-rabo foi, sem nenhuma dúvida, a fala do ministro Joaquim Barbosa: “Vossa Excelência não está falando com seus capangas de Mato Grosso, ministro Gilmar.” Não é preciso ser Doutor em Filosofia, especializado em análise lógica da linguagem, para destacar dessa fala o seguinte subentendido. A asserção negativa do ministro Barbosa abriga em seu bojo o claro pressuposto: “Gilmar Mendes tem capangas”. Menos, Joaquim, menos, por favor! Para dissipar qualquer dúvida, abrimos dicionários e procuramos a definição de “capanga”. Ei-la: “Valentão que por dinheiro se põe a serviço de alguém, para servir de guarda-costas” (do quimbundo: kappanga, sovaco). [Dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras]. O Minidicionário Aurélio acrescenta à definição anterior: “cabra”, “jagunço”. Ora, quem precisa de capangas, jagunços ou cabras - e de fato costuma tê-los - é o folclórico “coronel” do sertão, tão decantado em prosa e verso, uma espécie de gangster rural, um chefão de quadrilha. De onde se infere – com a mais pura e precisa lógica - que, para o ministro Barbosa, Gilmar Mendes - Presidente do Supremo Tribunal Federal – é um bandoleiro, um marginal, um fora-da-lei. Neste caso, supondo que a asserção de Barbosa seja verdadeira, estamos diante de uma total inversão de valores. Em vez de colocarem Mendes nas mãos da Justiça, colocaram a Justiça nas mãos dele. Porém, supondo que a asserção de Barbosa seja falsa, então não passa de uma injúria ou difamação. Como até mesmo estudantes de Direito de hoje sabem, calúnia, injúria e difamação são crimes contra a honra, de acordo com o Código Penal. Pode-se inferir, então, que Barbosa cometeu um crime contra a honra de Gilmar Mendes? Depende... De que? Ora, se ele puder provar que Gilmar Mendes tem capangas e é um bandoleiro, ele não cometeu nenhuma infração da lei: fez uma denúncia, apesar de não ser sua atribuição constitucional fazer denúncias, porém julgar e tão-somente julgar alegações de inconstitucionalidade. E é escusado dizer que a referida fala ocorreu no contexto de um julgamento de uma dessas alegações, como sói ocorrer no STF. Além disso, ainda que ele tenha supostamente cometido um crime contra a honra de Gilmar Mendes, se o suposto ofendido não se sentir atingido e não quiser recorrer à Justiça, é como se nada tivesse acontecido. Não será você que tomará as dores alheias, sentindo-se ofendido, não é mesmo? Mas suponhamos que ele tivesse se sentido atingido e desejasse processar Barbosa por injúria ou difamação? Será que tal coisa é legalmente cabível? Será que, a exemplo da imunidade parlamentar, ou impunidade pra lamentar, - este escudo protetor de nossos deploráveis representantes políticos em suas graves prevaricações - há também uma imunidade judicial? Será que há, mas somente no caso dos ministros do Supremo? Confesso minha ignorância a respeito desse instigante tópico, mas de uma coisa estou certo: Se o Supremo quiser ser respeitado, terá que respeitar aqueles de quem requer respeito e não estão dispostos a receber em seus ouvidos bate-bocas de boteco pé-sujo nas sessões de nossa mais alta Corte. Antes de qualquer providência - e se não for pedir muito aos Meritíssimos - alguns ministros do STF deviam fazer um cursinho de boas maneiras e, antes das candentes sessões, tomar uma boa dose de chá de camomila prevenindo-se contra o mal do pavio curto e suas indesejáveis seqüelas federativas - coisa mais devastadora do que uma possível pandemia da gripe do porco mexicano. Nota do Editor: Mario Guerreiro (xerxes39@gmail.com) é Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade. Autor de obras como Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000). Liberdade ou Igualdade (Porto Alegre, EDIOUCRS, 2002).
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