Crônica do Quinho
Saí do cinema e me dirigi ao semáforo para atravessar a Paulista em direção ao Conjunto Nacional. Estava sedento por um bom café. De onde estava pude ver Quinho encostado na parede, de perfil para a avenida, segurando o cotovelo esquerdo com a mão direita, apoiando o queixo na mão esquerda. Estava imerso em pensamentos. Enquanto o sinal não abria, eu o observava à distância. As luzes da noite, que acabaram de ser acendidas, deixavam a cidade mais bonita, sublinhando o vulto do meu amigo pensador. Atravessei e fui direto aonde ele estava. – Amigo Quinho, que faz aí, tão absorto, meu amigo? – Doutor, falou-me arregalando os olhos, como se despertasse, estava aqui pensando com os meus botões. É que vi a minha imagem refletida no espelho e não me reconheci. Não sou o meu corpo, meu corpo não sou eu, posso arrancar um braço ou uma perna que, de efetivo, nada me faltará. Estou a tanto tempo na rua que não me dei conta que a vida pobre tem seu preço. Sou a prova de que a alma e o corpo formam uma dualidade, o corpo é uma mera ferramenta da alma. – Puxa, Quinho, estava vendo você aí pensativo, viu-o como um Sócrates renascido, em transe de pensamento. – Esse pessoal materialista, doutor, se esquece do essencial, que é a transcendência, Deus, a fonte de tudo. Vivem na ilusão, aviltam-se a si mesmos reduzindo a existência à capacidade de realização corporal. A ironia é que um dos sacerdotes da ciência materialista, o Stephen Hawkins, com sua radical deficiência física, mostrou-se produtivo e racional até agora, uma negação explícita desse materialismo corporal. O que diria Nietzsche dele? O corpo não se confunde com a alma, uma obviedade. Estava cá pensando nessas coisas, a ponto de esquecer-me de mim mesmo. – Quinho, assim você fica cada vez mais parecido com o Sócrates, falei sorrindo. – Ah, doutor, Sócrates, teve uma iluminação, descobriu a razão e, mais ainda, que a fonte da razão é Deus. E que a razão é a instância capaz de descobrir a moral natural. Essa descoberta foi fundamental para a humanidade, só comparável com a revelação recebida pelos profetas hebreus. – É verdade, Quinho. Está bem filosófico hoje, meu amigo. – Eu, na minha modéstia, fico aqui especulando sobre as coisas celestes e investigando as coisas subterrâneas da alma humana, doutor. Mas não tenho o gênio de Sócrates. O que temos unicamente em comum é que nada legaremos escrito, falou gargalhando. E eu não tenho nenhum Platão para perpetuar meus devaneios pobres. – Quinho, fui ver o filme Anjos e Demônios ali do outro lado da avenida, falei mudando de assunto. – Eu li as resenhas, doutor, esse filme é outra difamação contra a Igreja Católica. O inimigo nunca descansa. Onde já se viu? O mal é como a anti-matéria que está no argumento do filme, uma negação do Povo de Deus. Acabou sendo uma boa representação deles mesmos, os difamadores, esses hereges malditos. – De fato, mas esse filme aqui está menos difamador do que o Código Da Vinci. Os homicidas são agora os inimigos da Igreja e deixaram de lado o Opus Dei, a criação do santo José Maria Escrivá. Neste aqui as vítimas são as boas almas da Igreja. – Vale a máxima do livro do Goethe, doutor: “Parte da força, que, empenhada no mal, o bem promove”, Mefistófeles falando de si mesmo. Esses homens maus são microcosmos de loucuras. – O filme é bem dirigido, Quinho, uma bela trilha sonora, um retrato lindo da cidade de Roma e do Vaticano. Gostei da plástica do filme. E, em um momento especial, tem um coro que canta o cântico de Nossa Senhora de Fátima, o Treze de Maio. – Essa canção é linda, doutor, evoca a minha infância. Lembro como se fosse hoje, vendo minha mãe a cantar na missa: “A treze de maio na cova da iria No céu aparece a Virgem Maria Os três pastorzinhos cercados de luz Recebem a visita da Mãe de Jesus” – Esse canto é muito bonito, Quinho, e no filme o arranjo ficou sensacional. Pena que o toca bem pouco. – É, doutor, mas já é um milagre que o tenham posto na trilha sonora. A evocação da Mãe de Deus é coisa muito poderosa, mesmo em filme de demonistas. – Sim, Quinho. Quer um café? – Quero, Doutor, vamos lá. Fomos os dois alegremente cantarolando o canto da Virgem de Fátima, no começo da noite paulistana. Nota do Editor: José Nivaldo Cordeiro (www.nivaldocordeiro.net) é executivo, nascido no Ceará. Reside atualmente em São Paulo. Declaradamente liberal, é um respeitado crítico das idéias coletivistas. É um dos mais relevantes articulistas nacionais do momento, escrevendo artigos diários para diversos jornais e sites nacionais. É Diretor da ANL – Associação Nacional de Livrarias.
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