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COLUNISTA
Sidney Borges
24/10/2004 - 05h52
Clô
 
 

Essa história é difícil de acreditar, mas juro ser verdadeira. Aconteceu em 1956, quando uma onda de fatos inexplicáveis deixou a todos com medo de que o fim do mundo tivesse chegado.

Perto da casa onde morávamos vivia um casal sem filhos, ele com cinqüenta e cinco anos, ela com trinta e oito. Seu Durval era aposentado. Passava os dias de pijama numa cadeira de balanço fumando um cigarro atrás do outro. Como conseqüência tossia. Tossia e praguejava em húngaro.

O nome era fantasia, na verdade ele se chamava Simão, adotou Durval por ser mais comercial. Dona Cotinha era gorda como um capado. Eu tinha medo de dizer isso depois da bronca que levei do meu pai, que vivia dizendo que dona Cotinha era gorda como um capado. Era difícil entender os adultos d’antanho.

Nas férias de julho, além de empinar papagaios, eu e meus amigos fizemos um teatrinho, cópia do Falcão Negro da televisão. A entrada custava três palitos de fósforos. Foi um verdadeiro sucesso, o teatro - o quintal da casa do Eduardinho - lotou.

O sobrinho de dona Cotinha, gordo igual a ela, perguntou se podia pagar com comprimidos, estava sem fósforos. O tesoureiro do clube convocou uma reunião de emergência e ficou decidido em assembléia que os comprimidos seriam aceitos. Também ficou decidido que três palitos de fósforos equivaliam a cinco comprimidos coloridos e oito se fossem brancos.

Grey, esse era o nome do gordinho, naquela época já existiam nomes esquisitos, foi até a casa dos tios, pegou um vidro de comprimidos da tia - para emagrecer - e pôs no bolso. Pagou a entrada e divertiu-se à beça com o espetáculo, parece ter sido o único.

Depois do show fomos jogar futebol, Gray ficou no gol, posição natural dos gordinhos. Num lance mais ríspido, o vidro caiu numa poça d’água e abriu, molhando o conteúdo. O vidro era escuro, deu para aproveitar, já os comprimidos sumiram.

Aí começou o inusitado. Mirinho e seu irmão Eduardo encontraram uma maleta de metal na beira do rio, quando estavam pescando. Estava cheia de bolinhas parecidas com os comprimidos. O resto é fácil de concluir, o gordinho encheu o vidro com as bolinhas e foi-se embora.

Não o vimos mais, no outro dia voltou para casa, as férias tinham terminado. Como a vida de criança é cheia de atividades, esquecemos o fato, estávamos empenhados na construção de um submarino aéreo.

Dias depois, Mirinho e seu irmão ficaram assustados com a visita de alguns homens vestidos de preto, que examinaram a mala e a levaram embora, dizendo para ninguém tocar no assunto. Só se falou nisso durante um bom tempo, até que as atenções se voltaram para Dona Cotinha.

De um dia para outro ela começou a ficar diferente. Emagreceu e emboniteceu, em poucas semanas a lata de banha se transformou numa espécie de Luz Del Fuego com as pernas da Cid Charisse, conforme ouvi meu avô cochichando para o tio Abílio.

Os homens não tinham outro assunto. As mulheres, a princípio fingiram ignorar, mas depois queriam saber o segredo. O fato é que um programa de rádio veio distribuir prêmios na rua de cima e um produtor botou olho na Dona Cotinha, agora chamada de Clô.

O nome dela era Clotilde, meu pai dizia que ela era parecida com a miss suéter. Disse apenas uma vez e levou um beliscão da minha mãe, depois nunca mais tocou no assunto. Acho que ele queria falar, mas tinha medo, pois quando dona Clô passava ele não tirava os olhos.

Do olhar do produtor ao teste na televisão foi um pulo e daí ao namoro com o galã de teleteatro foi outro pulo. Dona Cotinha, ou melhor, Clô, foi embora de casa. Foi morar com o "bonitão" num apartamento no Bexiga. Seu Durval ficou inconsolável, além de fumar passou a beber. Todos ficaram com pena dele, uma coisa aprendi naquela época, ouvindo os adultos. É perigoso ter mulher bonita. Melhor uma gorda na mão do que uma gostosa na cama de outro. Foi o padre Marcial que disse.

Seu Durval afirmava não ter saudades de dona Cotinha, mas não conseguia esquecer a Clô. Que mulher!

Com o início das aulas acabamos esquecendo o caso, salvo quando as mulheres cochichavam falando mal da ingrata que largou o marido por um bonitão rico qualquer. No carnaval ela apareceu na revista O Cruzeiro, no Baile dos Artistas do Arakan Clube, quase pelada, montada nas costas do tal artista com quem vivia.

Meses depois, tia Zulmira que era fofoqueira como ela só, disse que viu a Cotinha na cidade. Ela estava bem mais gorda, segundo titia. Todos acharam que era inveja, eu também achei, só que duas semanas depois, eu vi, com meus próprios olhos, da janela do ônibus Estações. Dona Cotinha era de novo a lata de banha.

Não demorou muito e um dia um carro parou na porta de seu Durval e dele desceu dona Cotinha mais gorda do que nunca. Seu Durval praguejou em húngaro, acendeu mais um cigarro e deixou que ela entrasse. Demorou para eu aprender a palavra. Catatonia. Foi isso que deu em dona Cotinha, segundo ouvi dos adultos. Ela passava os dias sentada, olhando para um vidrinho vazio. Minha avó dizia que era encosto, foi levada para tomar passes no centro, mas não adiantou. Ainda viveu quase trinta anos, cada ano mais gorda sendo que nos últimos tempos com barba.

Pobre seu Durval, morreu atropelado pelo bonde Fernando Costa. Dizem que se jogou nos trilhos de desgosto. Há mistérios na vida, mais do que imaginamos!


Nota do Editor: Sidney Borges é jornalista e trabalhou na Rede Globo, Rede Record, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Suplemento Marinha Mercante) Revista Voar, Revista Ícaro etc. Atualmente colabora com: O Guaruçá, Correio do Litoral, Observatório da Imprensa e Caros Amigos (sites); Lojas Murray, Sidney Borges e Ubatuba Víbora (blogs).
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