- Você me faz lembrar um suculento churrasco sob gulosas labaredas. - ele brincou ao ver a mulher rodopiar sobre os calcanhares, em poucas roupas, enquanto o corpo roçava-lhe levemente nas mãos abertas em leque. - Churrasco?!... - falou ela, simulando indignação e entrando no jogo. - Agora você perdeu muitos pontos comigo, rapaz! Pois eu imaginava que suas mãos estavam a enrolar pelo meu corpo uma bela seda chinesa. Fique esperto comigo! - E ambos caíram na gargalhada... Momentos descontraídos como aquele eram comuns na vida deles, um casal que vivia em “comum união” (ela adorava essa expressão) fazia um quarto de século. Mas, embora soubessem da importância daqueles instantes de descontração, em épocas turbulentas como a que estavam vivendo tais ocasiões ficavam raras. O filho caçula agora dormia no quarto ao lado, após a medicação para controlar a crise de asma. Remédios alopáticos, homeopáticos, tratamentos naturais, tudo havia sido tentado sem sucesso duradouro. A doença o atordoava praticamente desde que nascera. Catorze anos de tentativas as mais diversas em busca de cura. As crises apareciam com mais freqüência quando o clima atmosférico oscilava de forma brusca, como era o caso daqueles incomuns dias frios do inverno nordestino. - Sabe de uma coisa, meu bem... - disse ela, agora com seriedade no semblante e no tom de voz. - Faz algum tempo que a alegria não se demora com a gente...! Mas, sabemos bem o que acontece. As turbulências de saúde do nosso menino, somadas no momento às crises de começo da vida adulta dos dois mais velhos, têm deixado nebulosas as nossas lembranças mais agradáveis. No entanto, já vejo a saída, apesar do caminho estar escuro no momento. O problema mais grave que nosso menino está enfrentando, e que causa sofrimento a todos nós, logo-logo irá para o passado! A mulher abraçou-o demoradamente, revelando indefinível ternura. As esperanças de vitória eram fortemente alimentadas pelo sincero amor que nutria a aliança dos dois. Muitas outras situações críticas haviam sido vencidas. Um silêncio reconfortante inundou o quarto, quebrado apenas pela suave música, em baixo volume, que saía dos pequenos alto-falantes do velho rádio, e por distantes vozes das crianças que brincavam na rua aproveitando os últimos minutos de claridade do dia. - Sei que a cura do nosso filho está próxima, posso sentir isso... - ela pronunciou baixinho, mas com impressionante convicção. - Também creio fortemente nisso! - assentiu o marido. - Não paro de lembrar as palavras de minha mãe em momentos como este. Alimentam-me os ânimos os ensinamentos dos mais velhos, os ditados da sabedoria popular: “Não esmorecer para não desmerecer”! - E tem também as letras das canções que gostamos. “É preciso saber viver”, lembra? Outra coisa que costumava trazer força para eles eram certas passagens bíblicas. Quando reviam trechos como “a pureza do ouro é provada no fogo”, associavam isso à própria divindade dando suporte a ambos nas provações. Naquela noite, eles conversaram demorada e pacientemente. Estavam satisfeitos por estarem juntos e em harmonia. Depois silenciaram por longo momento e, sem qualquer sinal de pressa, voltaram a se abraçar. Na quietude do quarto, ele relembrou a cena do início da noite, as mãos simulando labaredas de amor a chamuscar de volúpia o corpo dela, que se sentia ternamente envolvida pela maciez de uma seda importada, a textura do tecido, a dança da interação espontânea do corpo com a seda, a cor que mais gostava... - Você está escutando? - ele sussurrou, cauteloso para não agredir os ouvidos da amada após o longo silêncio. Era uma música antiga que brotava do rádio e fazia renascer a menina da época do namoro. Ele sentia ainda forte desejo pela mulher, madura e bela, que comparava a uma flor de helicônia, formosa, resistente, exótica. Ela retribuía, chamando-o de lírio, cravo e outras flores bonitas de nomes masculinos. De repente era meia-noite... O terno amplexo, pouco a pouco, foi complementado por envolventes ósculos, recíproca celebração que resgatava a canção de amor abafada sob os problemas que os rondavam. E aquele amor revigorante do corpo e do espírito ressurgia numa noite encantada. E inundava a casa inteira com a música sagrada das gerações, purificando os caminhos que os descendentes percorreriam, promovendo curas...
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