Não se sentia bem. Foi quando tudo se apagou. E ficou assim por um tempo indeterminado. Tempo que não conseguiu calcular de modo exato. Era tempo suficiente para entrar em desespero, mas ele era forte. Ou se sentia forte. Mas aos poucos foi se acostumando com a luz. Uma luz branca ia se expandindo e começando a iluminar todo o ambiente. Percebeu então que estava em um pequeno quarto de paredes cinzas. Estava deitado e só escutava a respiração. Apenas a sua respiração. Tentou se sentar, mas percebeu que estava amarrado pela cintura. Não se lembrava de como havia parado ali. Sentia apenas uma leve dor de cabeça, talvez pela luz forte que invadia seus olhos. Com a mão direita conseguiu abrir a fivela e o cinto que o prendia. Então ficou sentado. Olhou em volta e só havia a cama, que na verdade descobriu que era uma maca, além de um pequeno criado-mudo com um copo de água, dois comprimidos e um despertador que marcava 12:12 e não mexia o ponteiro dos segundos. Tateou o criado-mudo buscando o copo. Encontrou também um bilhete com uma frase "Escolha um comprimido e beba". Achou estranho, mas talvez algum familiar houvesse deixado. Achou ainda mais estranho quando não se lembrou que tinha família. Colocou o comprido na boca e bebeu o líquido incolor do copo. O líquido queimou a garganta. Não era água. Era algo que lembrava vodca, mas não exatamente. Deixou o copo cair ao chão, mas este não quebrou, muito menos derramou o líquido restante. Ficou um pouco tonto, mas logo voltou a recuperar o equilíbrio da visão. Levantou-se e sentiu o chão quente queimar levemente a sola do pé. Olhou e viu que estava sobre um alçapão que dava para o subsolo. Escutou um gemido. - Abra. Abra. Tire-me daqui. Era uma voz conhecida. Tão conhecida que não lembrava de onde havia escutado. Uma voz que não era exatamente feminina nem masculina. Era uma voz que gemia. Abriu o alçapão com facilidade. Procurou uma escada com o pé esquerdo, mas nada encontrou. Foi quando sentiu sua perna ser agarrada por uma mão fria, unhas grandes que entravam na carne. Sentia o seu sangue escorrer pelo pé e gotejar em algum lugar que respondia com som líquido. Tentou olhar de quem era a mão e nada. Então foi puxado. E seu corpo bateu forte sobre um chão molhado. Nada mais segurava sua perna, mas sentia que ela queimava em contato com o líquido que estava no chão. Olhou em volta e viu apenas ao longe uma luz fraca que vinha de uma vela. Foi até lá. A vela estava sobre uma mesa. Nela havia um espelho e um bilhete. Ao lado um comprimido. O mesmo que havia ingerido antes de cair ali. Se olhou no espelho e teve certeza. Estava morto? Não se sentia bem. Foi quando tudo se apagou. Quando acordou se sentia forte. Mas aos poucos foi se acostumando com a luz. Estava nas ferragens de um carro. Seu pé estava sendo puxado por um bombeiro das engrenagens do automóvel. A carne estava rasgada pelo metal retorcido. O cheiro do vômito lembrava uma mistura estranha de licores e destilados. Tossiu e sentiu algo surgir na sua boca. Era apenas um dos seus comprimidos de ecstasy. Era noite e ao fundo escutava o gemido do som eletrônico que se repetia sem cansar. Sorriu. Estava vivo. Mas em breve morreria de novo. Em sua vida moderna. Vazia de sentido, repleta de comprimidos modernos. Nota do Editor: David Tiago Cardoso (mundodedavid.blogspot.com) é psicólogo.
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