Era o ano de 1965: Eu tinha cinco anos de idade e morava num bairro simples e tranqüilo, onde as crianças podiam brincar na rua, sem sustos. Só havia casas e as portas podiam ficar destrancadas durante o dia. O único senão era o casarão da esquina, único com muros altos, onde nunca víamos ninguém. Era a nossa casa mal-assombrada! De noite, nos dias quentes, as pessoas colocavam cadeiras nas ruas e todos conversavam. Havia respeito, confiança e amizade. Nosso quintal tinha mamoeiro, nespereira, laranjeira e uma horta bem diversificada, com canteiros e cercas. E olhem que o terreno tinha apenas cinco metros de largura! Mas eram as carambolas da Dona “Zalé”, vizinha predileta, o objeto de desejo. O dinheiro era curto, mas a felicidade não tinha preço. O Carnaval era uma brincadeira inocente. Havia malícia e sensualidade, sem dúvida, mas também havia limites consensuais. Todos os clubes tinham bailes e sempre estavam cheios, como os campos de futebol de então. Havia bailes públicos nas ruas, desfiles de fantasias e escolas de samba sem a pompa e circunstância de hoje, mas com alegria despretensiosa. Os grandes artistas ainda compunham marchinhas para a época. Havia batalhas de confete, corsos e encontro de blocos, onde o máximo que acontecia era um jogar farinha e água (água mesmo!) no outro. Pais e filhos caminhavam de mãos dadas entre foliões fantasiados. As brincadeiras eram consentidas. Havia quase uma cumplicidade de todos. Tudo era uma grande e democrática festa! O clima contagiava todos e as pessoas se olhavam e se relacionavam sem tanto preconceito e formalidade. Se para as crianças tudo já era uma grande festa e fantasia, o Carnaval era o ponto culminante! Um dia, um vizinho, dono de um caminhão de aluguel, resolveu convidar todas as crianças da rua para dar um passeio. Os pais nem titubearam: “Podem ir!”. O caminhão era um Ford da década de 1920, daqueles que a partida era na base da manivela. Ninguém se importou, pois além de quase ninguém ter carro fazia sucesso na televisão a série “Comedy Caspers”, com vários personagens do cinema mudo, entre eles um grupo de crianças que tinha um parecido. Subimos todos na carroceria, munidos de confete e serpentina, e iniciamos nossa pequena odisséia pelas ruas da cidade. Saudávamos e éramos saudados por todos! Outras crianças corriam, tentando pegar nosso véu de serpentinas ou dar-nos um “caldo”. As buzinas faziam coro. Foi a primeira e última vez que fiz esse passeio, pois no ano seguinte mudamos de bairro, para um apartamento. Pouco depois, soubemos que a Dona “Zalé” falecera. As fantasias de infância foram desaparecendo, queimadas pelo amadurecimento precoce, e a vida virou, por um longo tempo, uma Quarta-Feira de Cinzas. A cidade perdeu seu jeito inocente. As pessoas não convivem mais nas ruas, mas em grupos “seletos” e fechados, que vivem de querer tudo para si e nada para os outros. Mas a casa e as lembranças daquele carnaval ainda estão lá! Curiosamente, lá se vão mais de quarenta anos. Uma quaresma! Graças a Deus, não precisei de tanto tempo para ressuscitar a crença em dias melhores. Hoje sei que mesmo os dias que parecem ruins, são prenúncios de melhores, pois, mal sabia eu, minha Colombina, que só conheci muitos anos depois, morava a poucos metros daquele apartamento sem glamour nem quintal. Hoje, fazemos parte do bloco da esperança, que precisa sair para desfilar, jogar seus confetes e serpentinas, e trazer o povo para as ruas, para voltar a se conhecer, conviver e respeitar. Que tal vir para esse bloco também, “Seja você quem for, seja o que Deus quiser. Seja você quem for, seja o que Deus quiser”? Nota do Editor: Adilson Luiz Gonçalves é mestre em educação, escritor, engenheiro, professor universitário (UNISANTOS e UNISANTA) e compositor. E-mail: prof_adilson_luiz@yahoo.com.br.
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