Você está muito aborrecido. Não pára de reclamar de todos. Se não está gostando da vida que tem, por que não construir uma nova existência? Não entendo como você consegue sobreviver o dia todo falando mal desse ou daquele. “Fulana está me irritando, pois não faz suas obrigações”. “Não sei como suporto a incompetência de tal pessoa, pois executa mal tudo que faz”. “Seu sicrano é cheio de manias, sem falar nos péssimos hábitos que tem”. “A maneira como ela come está me dando nos nervos”. “Não sei como consigo conviver com aquele lá, pois está insuportável”. Eu é que não entendo você. Perde o sono por causa desse convívio patológico, mas nada faz para modificá-lo. Pensei que suas queixas tivessem algum objetivo, alguma serventia, mas não o vejo fazer nada de concreto para melhorar seus relacionamentos. Chega a perder o sono com tanta chateação, mas não se emenda, continua fazendo tudo como sempre fez. Não toma uma atitude de ruptura e nem conciliatória. Vi como você está nervoso hoje. Queixou-se dela novamente. Como consegue continuar desse jeito? Acho que seria melhor reduzir o convívio diário. Não dá para ficar cara a cara, e falar abertamente que assim você não suporta mais? Essa pessoa lhe atormenta, mas até que ponto você também atormenta essa pessoa? Você me diz que ela é bruta, mas até quanto a sua rispidez em resposta não torna a situação um ciclo vicioso? Tem hora que para desarmar alguém, que age com prevenção contra você, é preciso agir de forma educada. Difícil manter a pose de grosseira diante de um gesto cordial. Mas você não está para conversa. Pensei que estava me contando no intuito de receber uma sugestão, mas não. Vejo que já está prestes a brigar comigo também. Santa impaciência! Acredito que esteja precisando de um descanso, um merecido descanso. Seus maus bofes não são culpa de ninguém, mas de uma circunstância que já se arrasta há tempos. Que tal uma alteração, uma reviravolta em sua vida, um recomeçar para valer? Não? Pensei que era isso que queria ouvir: um estímulo para construir uma mudança. Como quer que tudo permaneça do mesmo modo que está, por qual motivo fica a queixar-se? Imagino que o ato de reclamar se tornou um ingrediente necessário ao seu dia, não apenas isso, mas até indispensável a sua existência. Como você vai existir sem ter de quem reclamar, em quem colocar a culpa por tudo que ainda não conseguiu fazer? Pensa que é o único, não é? Mas não. Sei de outros que agem assim. Conta sobre os defeitos de alguém, acha que o outro precisa mudar. Você é quem deveria mudar, mas sei que não tem intenção de alterar nada. Não que eu esteja cansada de escutar. Longe disso. Não e não. Eu quase o compreendo. Ou pelo menos procuro isso. Não o critico, mas também não entendo bem a sua lógica de reclamante. Então lhe peço: poderia me ajudar a entendê-lo melhor? Embora pareça uma situação complexa, é possível compreender que as reclamações e o estilo de sempre sofrer podem ser utilizados para ganhos emocionais, de atenção, de cuidados. O eterno queixar-se pode ser uma solução, embora má, encontrada por você para reequilibrar-se no mundo. Você não quer mudança, pois ficará sem discurso. Você não aceitará a retirada das suas soluções, ou seja, reclamar de todo mundo, para a manutenção apenas dos seus problemas, na verdade a sua real dificuldade de enfrentar seus medos. Nota do Editor: Mara Narciso é médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
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