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Crônicas
19/05/2010 - 07h01
Ubatubância
Leão Machado
 
Luiz Moura 

Não sei quem criou o neologismo "ubatubância". Ouvi esta palavra pela primeira vez do meu amigo, Coronel Hélio Ferreira, oficial reformado da Força Aérea Brasileira, que residiu alguns anos em Ubatuba e hoje, que se diplomou em direito, vive em Taubaté, sua terra natal. Não sei se foi o Coronel quem criou o neologismo, mas foi dele que ouvi a palavra pela primeira vez.

A "ubatubância", segundo o Coronel Hélio e o emprego que se faz do neologismo por aqui, é uma coisa assim como os antibióticos modernos, ditos de "largo espectro", pois significa; muitas e diferentes coisas, estados de alma e comportamento de pessoas. É, em essência, um estado de espírito que só se manifesta em Ubatuba e é composto de indefinível complexo de propósitos, impulsos e reações, misto de beatitude contemplativa, de preguiça de pensar e de agir, de quase completa abulia, coisas, enfim, de difícil definição, que talvez se aproximem do que os budistas inventaram com o nome de Nirvana, como representativo de "não ser"...

Na verdade, não sei mesmo definir bem "ubatubância", porque é complexo demais e abrange gama enorme de ações, que são, em si mesmas, dificilmente definíveis. Mas sei bem que participam muito do estado de vadiação, que, segundo Eça de Queiroz, é a coisa mais absorvente que existe neste mundo. Quem não tem absolutamente nada para fazer, não tem mesmo tempo para fazer coisa alguma...

Tentarei, contudo, dar uma pequena explicação, se for possível. Não sei se a "ubatubância" nasce da calma e placidez que provém da contemplação do oceano, que é um espetáculo essencialmente repousante. Não sei se é o estado de espírito gerado pelos aromas mil das noites ubatubenses, trazidos à cidade pelo Terralão, que vem da serra e da floresta e sopra somente à noite. Não sei também se nascerá da doce emoção que suscita em nós a contemplação do céu noturno, povoado de estrelas cintilantes ou alagado de resplandescente luar.

Não sei mesmo a causa da "ubatubância", mas sou capaz de identificá-la em toda a sua magnífica doçura, nesse estado em que a gente não deseja falar nada, não deseja fazer coisa alguma, a fim de poder melhor impregnar-se da magia do ambiente amolecedor da cidade.

Nesta altura da crônica, detenho a pena, para ler o que escrevi e cheguei à conclusão de que não fui capaz de transmitir o que pretendo, que é dar uma noção, ainda que pálida e insuficiente, do que seja a "ubatubância". Parece-me então que poderei lograr, não propriamente transmitir a noção exata da coisa, que reconheço ser impossível, pelo menos, para mim, mas ao menos dar uma idéia aproximada, através de exemplos de fatos corriqueiros, em que a "ubatubância" se manifesta. Talvez descrevendo os efeitos, o leitor possa compreender, ainda que seja insuficientemente, o que é a "ubatubância".

De repente, a gente tem em casa curto-circuito em um chuveiro elétrico ou uma torneira que, mesmo fechada, teima em vazar água. Vai-se à cidade procurar um eletricista ou um encanador e lhe conta o nosso desarranjo mecânico. Eletricista e encanador nos prometem solenemente ir até nossa casa para corrigir o defeito e resolver o problema. A gente volta a casa com esperança e com esperança aguarda a chegada do técnico especialista. E aguarda só, porque o homem não aparece e o chuveiro continua em curto (a expressão curto, conquanto não vernácula, pertence ao jargão dos eletricistas) e a torneira continua monotonamente a pingar. Isto é "ubatubância"...

A gente deseja escrever um postal e mandar a um amigo de São Paulo ou do interior, para demonstrar que, mesmo em Ubatuba, a gente não esquece os amigos. Mas o postal começa a ser protelado de um dia para outro. É muito difícil escrever um postal, pois já se sabe que o esforço que exigiria escrevê-lo equivaleria ao esforço de quem, no planalto, fosse obrigado a escrever um segundo volume da Bíblia... E não se escreve e não se manda nenhum postal para ninguém. É "ubatubância"...

Um amigo nos convida para, no dia seguinte, fazer um passeio de lancha até a Pecinguaba ou até a praia do Camburi. A gente já sabe que a Pecinguaba é de uma beleza selvagem e emocionante e que o Camburi é uma praia de misterioso encanto. Mas rejeita o convite. É a "ubatubância", que impede qualquer esforço, qualquer realização, porque o bom mesmo, em Ubatuba, é não fazer, não pensar, não ser. Nirvana mesmo...

Quem deu, porém, o melhor exemplo da "ubatubância" foi minha filha Tarsila, fidelíssima freqüentadora de Ubatuba, das magias e sortilégios daquelas praias de idílio e devaneio.

Quando vamos passar nossas temporadas de férias, levamos conosco nossos bichos domésticos, para se beneficiarem com a mudança de ares, de clima e de altitude - duas gatas, uma da própria Tarsila e outra do Tertius, um dos mais jovens dos meus netos. Estas gatas, que vivem em São Paulo, vidinha apertada de apartamento, se regalam por aquelas praias - caçam seus pardais, seus caranguejos e suas lagartixas, comem sardinhas e lulas e à noite se desforram da vida de São Paulo, namorando os gatos ubatubenses das vizinhanças da nossa casa. Com tolerância e risonha complacência, deixamo-las namorar à vontade, porque o namoro também é um direito dos gatos.

Pois bem, às vezes as gatas estão no jardim da nossa casa ou na praia, que é uma continuação do jardim, entregues às ocupações normais de gatas. Eis que surge, de repente, um cachorro, dos milhares que existem em Ubatuba. Ao verem o tradicional inimigo da espécie, nossas gatas cumprem galhardamente seu dever. Os pelos se lhes eriçam, a cauda se embandeira, arqueiam o corpo em postura de defesa e fitam as orelhas.

Mas os cães param um momento diante do portão aberto, para ver o espetáculo da indignação das nossas gatas. Como que sorriem daqueles desperdícios de energia e reação e se afastam, sem emitir nenhum latido e sem demonstrar sequer a menor surpresa. É um comportamento perfeitamente indiferente, coisa que não se vê em nenhuma parte do planeta, tratando-se de cães em presença de gatos. Tarsila afirma que é "ubatubância" dos cachorros...


Nota do Editor: Leão Machado, Revista da Academia Paulista de Letras, Crônicas de Ubatuba, Ubatubância, páginas 171, 172, 173 e 174, ano (?).

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