Em 1988, discursando em Berlim Ocidental, Ronald Reagan disse: “Mr. Gorbachov, tear down this wall!” (ponha abaixo este muro!), mas não foi o dirigente soviético que atendeu ao apelo do presidente americano. O muro foi derrubado em 1989 pelas marretadas de berlinenses indignados e enfurecidos. E em 1991, ocorreu a dissolução do Império do Mal, a URSS, surgindo assim uma nova etapa da história com características assaz pitorescas. O marxismo não morreu, porém recebeu um golpe fatal, fortalecido pela abertura parcial da caixa preta da União Soviética, de onde surgiram mais insetos nojentos e repelentes do que quando um desavisado resolveu abrir a mítica Boceta de Pandora. Apesar da contundência do referido golpe, o marxismo estrebuchante tem se recusado a morrer numa lenta agonia. No entanto, inócuas mezinhas e frenéticas pajelanças ainda tentam salvá-lo. Várias foram as reações dos marxistas empedernidos, seus acólitos e incautos simpatizantes, mas quero me ater a apenas uma reação típica: a de tentar nos persuadir que o diabo não é tão feio quanto se pinta, ou seja: Marx não foi bem compreendido por seus seguidores. Seu pensamento foi distorcido por aqueles que o puseram em prática em seus países. Mas talvez se os respectivos regimes tivessem durado mais uns setenta anos, ele acabaria dando certo... Essa sutil estratégia retórica inclui ainda a manobra de isentar as ideias de Marx da responsabilidade pelas inúmeras atrocidades políticas e mazelas econômicas nos países em que estas foram postas em prática e, ao mesmo tempo, escolher um bode expiatório qualquer para ocupar seu lugar. Certa vez ouvi da boca de um papagaio repetidor de idéias a seguinte pérola dita com um ar solene: “Stalin destruiu o sonho de Lenin!”, como se o “homem de aço” – em russo, “Stalin” quer dizer exatamente isto e era o apelido de Josef Vissarionóvich Djugachvili – tivesse transformado o belo sonho de Vladmir Ílitch Uliánov, vulgo “Lenin”, num horrendo pesadelo. Quando, na realidade, ele transformou o pesadelo de Lenin na mais estúpida, selvagem e cruel realidade social. Fato histórico fartamente documentado, entre outros livros, por S. Courtois et allia: Le Livre Noir du Communisme: crimes, terreur, répression. Paris. Robert Laffont. 1997 (Há tradução: O Livro Negro do Comunismo) e por F. Furet: O Passado de Uma Ilusão: ensaio sobre a idéia comunista no século XX. São Paulo. Siciliano. 1995. E agora eis que deparo com um artigo do professor Renato Janine Ribeiro - um dos luminares da USP – tentando me persuadir que o vilão da história é na realidade Lenin. Não foi Stalin quem destruiu o sonho de Lenin, foi Lenin quem destruiu o de Marx. Pode? Pode sim, mas à custa de muitos capciosos sofismas e pegajosa baba de quiabo. O referido professor abre com chave de ouro seu artigo dizendo: “Não há dúvida de que Marx foi um pensador de esquerda. Isso quer dizer duas coisas: primeiro, ele foi um pensador cujas ideias como a importância da economia ("condições materiais de existência") na vida social influenciaram também outras famílias políticas. Segundo, foi um político cujo nome foi fartamente invocado pelos partidos comunistas e/ou marxistas-leninistas no último século. Mas talvez esses partidos não passassem num exame sobre o pensamento de Marx.” (Republicado em Rede Liberal em 26/4/2009). Deixando de lado coisas menos importantes, vamos nos ater à principal: o autor quer explicitamente dizer que os partidos de esquerda não compreenderam e/ou distorceram as idéias de Marx. Essa é parte da estratégia que tenta livrar a cara do grande vilão. Quando desmoronou o socialismo totalitário da URSS alguns marxistas alegaram que isto ocorreu porque o regime era socialista, mas não era democrático. Outros - como é o caso de notáveis petistas - alegaram que não era uma coisa nem outra: tratava-se do tal de “socialismo real”, quer dizer: o que realmente ocorreu na história, não o pensado por Marx. Um adepto do criptocomunista Jürgen Habermas me disse algo espantoso: “o verdadeiro socialismo marxista nunca foi posto em prática”. Antes não tivesse sido mesmo... Referia-se ao autêntico “socialismo científico” contrariamente ao “socialismo utópico”, denominações da lavra do próprio Karl Marx para denominar o seu e todos os outros respectivamente. Marx acreditava estar fazendo ciência e ser o porta-voz do proletariado e quem quer que discordasse dele era imediatamente taxado de estar produzindo “ideologia” (na mais pejorativa conotação) e ser um porta-voz do execrável pensamento burguês (com conotação mais pejorativa ainda). Mas prossegue o luminar da USP... “Resumirei esse pensador complexo em três ideias fortes, que estão longe de esgotá-lo, mas são essenciais. A primeira: deve ser extinta a propriedade privada dos meios de produção. Eles devem pertencer à sociedade, e não a indivíduos. É claro que por meios de produção não se entende a casa, o carro, os móveis, mas bens de impacto maior. É esse o ponto que coloca Marx à esquerda e ainda hoje desperta a ira dos anticomunistas, que receiam perder suas propriedades.” É verdade que Marx pregava a abolição da propriedade privada dos meios de produção, mas não que estes mesmos devessem “pertencer à sociedade”, mas sim ao Estado: os produtores não eram proprietários, mas sim meros funcionários do Estado em uma economia totalmente dirigida e planejada pelo Gosplan (órgão do planejamento central da URSS). Se pertencessem à sociedade, como quer o preclaro professor, eles pertenceriam a todos os indivíduos que a compõem e sem os quais ela só existe como uma abstração. Mas não devemos fazer a inferência apressada de que Renato Janine Ribeiro não faz nenhuma distinção entre “sociedade” e “Estado”. Ele provavelmente cometeu um lapsus calami e não está entre os escritores que “confundiram de tal modo a sociedade com o Estado, que deixaram pouca ou nenhuma distinção entre ambos, quando estas coisas não só são diferentes como também têm origens diferentes” (Thomas Paine: O Senso Comum. Brasília. EDUNB. 1961, p.52). Certamente a expressão “meios de produção” não se aplica a casas, carros, móveis etc. e Marx nunca pretendeu abolir a propriedade privada de tais coisas, mas o que “ainda hoje desperta a ira dos anticomunistas” - e uma justificada ira – não é o receio de perder essas propriedades, porém o de perder, entre outras coisas, sua liberdade, não só sua liberdade política mas também sua liberdade de escolha como consumidores. Uma vez que todos os meios de produção estão nas mãos do Estado são os agentes do Estado que determinam o que e quanto produzir, de acordo com planejamento econômico central. Ao consumidor resta apenas consumir os produtos determinados pelo Estado e ao preço determinado pelo Estado. Renato Janine parte então para o que chamou de segunda ideia-chave: “Geralmente a esquerda se pauta pela defesa de um Estado atuante na economia. Até se distingue esquerda e direita pelo papel do Estado na vida econômica. Ora, Marx não defende o Estado máximo. Nem o Estado mínimo, é óbvio. O que ele defende é o Estado nenhum. A supressão do Estado é um princípio fundamental para ele, que aí se aproxima dos anarquistas.” De qual esquerda ele está falando? “Um Estado atuante na economia” pode ser a característica dos socialismos democráticos em que vige a assim chamada “economia mista” com forte predominância de empresas estatais em relação a empresas privadas, o que é menos mal, de meu ponto de vista. Mas se for o caso da esquerda totalitária, não é correto falar de um “Estado atuante”, a menos que se entenda o único atuante na economia, o que é pior, de meu ponto de vista. Nota do Editor: Mario Guerreiro (xerxes39@gmail.com) é Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Membro Fundador da Sociedade de Economia Personalista. Membro do Instituto Liberal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Estudos Filosóficos e Interdisciplinares da UniverCidade. Autor de obras como Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000). Liberdade ou Igualdade (Porto Alegre, EDIOUCRS, 2002).
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